segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O legado

"A ideia do que seria a América se os clássicos tivessem ampla circulação perturba meu sono"

Ezra Pound
Os Cantos
Introdução
Editora Nova Fronteira, 2002.



- O que o Sr. anda lendo?
- O Legado de Humboldt, de Saul Bellow.
-Hum...
- Não indicado para menores...
- Pornográfico?
- Não, filosófico...

Um bom fim

"O Sr. saberia me informar se a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim fica nessas redondezas?".
"Eu não saberia...".
"Tudo bem, obrigado...".
"Eu não presto atenção em Igrejas.".
"Hã!!!"
"Eu sou um velho e imundo porco ateu".
"Um porco...".
"Me poupe de suas heresias!".
"Um gordo e felizardo porco envolto numa poça de lama ateia."

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A colheita

Quando dei partida na colheitadeira de soja John Deere S680, já pensava no sucesso que estava sendo A colheita. Não pensava exatamente na Colheita de grãos de 2013. Não pensava na soja que estava prestes a colher. Na realidade, eu estava cagando pra lavoura de soja madura que diante de mim se curvava. Pensava noutra colheita. Fiz as primeiras manobras. O picador de palha iniciou seu trabalho sem oscilações, deixando atrás da máquina um rastro de resíduos que futuramente dariam, na condição de adubo, mais uma contribuição para a produção de alimentos. Mas eu sinceramente não estava nenhum pouco preocupado com a fartura dos grãos dourados que pipocavam doidivanas na debulhadora. Fiz mais algumas manobras e me ocorreu de acionar o condicionador de ar. Lá fora a imensidão da fazenda, a fartura de grãos, palha, pó, solo. Cá dentro uns pensamentos, um aparelhinho silencioso a manter o ar refrigerado artificialmente com a ajuda dessa redoma de vidro translúcido. Na natureza nada se perde. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Chico Biguá


Joca Alcino acaba de ser promovido por merecimento, isso é fato. Pela defesa incondicional dos interesses do patrão e do agronegócio. No embate entre a ecologia e o agronegócio, no nosso caso em particular, aqui em Jardim, Mato Grosso do Sul, prevaleceu o segundo.  Na minha modesta concepção, ecologia ainda é uma ideia abstrata, difícil de ser posta em prática. Fica localizada mais no campo das teorias. Sua semeadura não encontrou terreno fértil entre nós. Agronegócio, ao contrário, representa algo mais palpável, concreto: o pão nosso de cada dia. Não sou hipócrita, entre o mato, o bicho e as pessoas eu fico com a terceira opção. Talvez pro turismo, a lógica seja outra. Mas eu defendo outros interesses. 
Ainda estou em dúvida se devo ou não publicar essa pequena narrativa, com destaque, nos principais jornais do país. Dinheiro eu tenho pra isso. O certo é que não medirei esforços para fazer prevalecer meu ponto de vista. Já avisei meu advogado. Recurso para a causa não faltará. Posso até me dar mal, como se diz, mas ao menos o meu ponto de vista ficará registrado. As consequências desse meu gesto me preocupam um pouco. A estratégia de defesa está ululando na minha cabeça, mas essa é uma atribuição do meu defensor. Lealdade pra mim é a maior das virtudes. Lealdade ao patrão e ao agronegócio chega a me emocionar. Joca Alcino acaba de ser promovido, será o capataz de uma de minhas fazendas.  Ademais, esse país é o que é nesses últimos tempos por conta do agronegócio. Sem o agronegócio essa merda de país estaria pior do que está. Sem o produtor rural, nas cidades não haveria progresso, nas cidades não haveria qualidade de vida, seus porras, já que a alface hidropônica que vocês produzem nos apartamentos não daria conta de alimentar sequer as formiguinhas. Só com alface, seus bostas, o big-mac não teria sabor nenhum! Desculpem os insultos, só o que quero é que não me julguem gratuitamente.
           Sou fazendeiro no centro-oeste brasileiro. Também tenho propriedades rurais de tamanho médio no Paraná, na região de Cascavel. Possuo uma porção de fazendas no Mato Grosso do Sul, nos municípios de Jardim, Sidrolândia, São Gabriel do Oeste, Chapadão do Sul, Camapuã, e arrendo outras tantas. Algumas são cortadas pelo rio Miranda e estão localizadas no município de mesmo nome. Nas terras arrendadas crio gado para o abate. Todo o manejo do gado é feito de tal forma a não prejudicar o meio-ambiente, embora às vezes isso não seja exequível. Nas fazendas de minha propriedade o relevo é mais propício para a lavoura, culturas de soja e milho, mas reservo alguns hectares para a plantação de mandioca e, a título de experiência, cultivo arroz e feijão. Nessas áreas a preocupação com práticas sustentáveis é razoável, principalmente com a problemática do agrotóxico versus Aquífero Guarani.  Sou filho de colonos alemães, nascido no interior do Rio Grande do Sul, e, nos anos 80 do século passado, migrei para o Mato Grosso do Sul com o intuito de fazer fortuna, o que, sem falsa modéstia, consegui às custas do meu esforço pessoal e do meu suor diário, o qual, embora a minha situação financeira hoje em dia seja das melhores, continuo vertendo como se fosse aquele jovem migrante gaúcho do século XX.
          As minhas fazendas estão situadas em vários municípios, mas é na cidade de Jardim que moro faz uns 15 anos. Foi lá que há anos atrás, num festa de gineteadas bem ao estilo gaúcho, conheci minha esposa Adelaide. Lá, comprei um sítio que possui em torno de 50 hectares de terra e é o meu xodó ultimamente. É lá que, a pedido dos meus dois filhos, Pedro e Lúcia, que são agrônomos e adoram fazer algumas invencionices nessa área, entenda-se empreendedorismo agrícola, resolvi entrar no ramo da piscicultura.
         Sou um sujeito da lida campesina. Mas não pensem que sou iletrado e tosco. Não tenho acesso à alta cultura, mas com a internet e o Google me garanto, tranquilamente.  Pra quem não sabe, pisci, do latim, peixe, e cultura, também do latim, ato de cultivar, então piscicultura é a arte de cultivar peixes. Uma arte, com certeza, a experiência tem me dito. Pra você que é leigo, e que, talvez, já tenha comprado uma peça dos meus peixes aí em Campo Grande ou em qualquer outra cidade maior, lhe garanto que não é nada fácil. Não fosse o empenho do Pedro e da Lúcia, penso que já teria desistido. Seria a primeira decepção profissional da minha vida. Plantar soja, milho, arroz, feijão e mandioca é fácil a despeito da problemática do clima. Colher também. Criar gado nem se fala. Basta um bom campo, capataz e alguns peões bem treinados e leais que a coisa anda por si só. Difícil é criar peixe. Mais difícil é vender peixe. O brasileiro está acostumado a comer arroz, feijão, mandioca e carne bovina. Peixe, bem menos. Por isso a dificuldade.
       Todavia não tem sido apenas isso. Os últimos dias não tem sido fáceis. A pressão arterial subiu consideravelmente, e meu médico, que me visita dia sim dia não, tem me dito para evitar o estresse, controlar a comida gordurosa e largar de vez a cervejinha do final do dia. Tudo bem, concordo com ele, a carne gorda já cortei, quer dizer, evito comer, substituo com carne de peixe, mas a cerveja e o estresse está complicado deixar de lado. O estresse e a cerveja faço questão de manter perto de mim. Tudo por causa dos malditos biguás.
       Biguá é uma ave aquática comum no pantanal sulmatogrossense. Alimenta-se, principalmente, de peixes, os quais, evidentemente, não produz. É uma ave de penugem negra, carente da glândula uropigial (vide Google), sendo essa característica o seu principal diferencial em relação a outros pássaros, pois, ao mergulhar, as penas se encharcam rapidamente, ficam mais pesadas, retendo menos ar, o que acaba permitindo que essa ave possa realizar mergulhos mais eficazes, mais longos, cujo resultado são a captura rápida das suas presas. Depois, seca suas penas ao sol, abrindo suas longas asas.
           Recentemente, no meu sítio, um bando se instalou e o prejuízo foi facilmente percebido nos açudes. O estrago foi grande. Esse bicho não perdoa nenhuma variedade de peixes, mas prefere os mais saborosos, como o pintado. Mas também ataca os pacus e as curimbas. Então resolvi tomar providências. Contratei uns pistoleiros, bons atiradores. Joca Alcino, o chefe do grupo. Estabeleci turnos de vigia. Montamos campana. E nada. A turma da rapinagem cedo percebeu nosso intento.
            Não me venha agora nessa altura da narrativa com esses papos de ecologia, sustentabilidade, já lhe disse que sempre que posso faço a minha parte, não adianta dizer que o bicho não tem culpa, que o homem invadiu seu habitat e outras cantilenas do homem citadino. O cidadão que vive nas cidades grandes gosta de contar para as crianças essas historinhas de preservação ambiental, mas não larga de jeito nenhum do seu carro vomitador de monóxido de carbono, não separa seu lixo reciclável, é consumista ao extremo, não faz nada em prol do meio ambiente, porém é o primeiro a abrir a goela para falar mal dos produtores rurais que desmatam para abrir novas lavouras e produzir comida, chega a tocar fogo no corpo em favor de macaquinhos e outros animais, mas se esquece dos mendigos e dos meninos de ruas que se amontoam nos semáforos e esquinas das cidades pedindo um trocado pra comer.  Pois é, o biguá é um bicho ladino, muito sagaz, percebeu de cara nossas movimentações bélicas e os prejuízos só fizeram aumentar. Não conseguíamos abatê-los tampouco conter a sangria predatória. Por isso meu estresse. Por isso tenho bebido mais do que de costume.
            Mas não me dei por vencido. Atravessei a fronteira com o Paraguai e adquiri alguns rifles de longo alcance e mira a laser. Foi aí que comecei a virar o jogo contra os larápios. Joca Alcino, velho camarada de labuta, foi quem me trouxe a primeira notícia alvissareira.
           - Patrão, mandei bala no ladino, e esse é dos grandes! Acertei uma bem no peito e outra, mais de perto, na têmpora, pra completar o serviço.
            Descemos rapidamente para o local indicado pelo meu empregado de confiança.
           Reparei na gigante carcaça negra ensanguentada estendida no solo, e, por um instante, me deu pena do bicho.
         Fiquei um tempinho olhando a sua silhueta fúnebre, e sussurrei “então era esse o meu inimigo maior, então era esse o pai dos meus prejuízos”.
          Debrucei-me e procurei nos bolsos dele algum documento de identidade. E encontrei.
          - Francisco da Silva, eu disse olhando para o meu peão leal.
          Joca Alcino não perdeu tempo. Algoz, arrumou um apelido para sua vítima.
          - Chico Biguá, ele é agora.
          Em seguida, zeloso, quis saber:
         - O que faço com os anzóis e esses peixes, patrão?
         - Chico Biguá, eu me limitei a murmurar, de rifle em punho, e olhei no rumo das matas adjacentes pra ver se visualizava algum pássaro negro de penas molhadas estendidas ao sol.

A oferta é a procura


             Acabo de afixar uma plaquinha de vende-se no meu automóvel último modelo. A aquisição dele foi a pedido da minha noiva na época. É fato que ele vivia apinhado de pândegos e putas, o que determinou a nossa separação recente. Nem sei como durou tanto tempo, o relacionamento. A intenção é vender o carro imediatamente, por causa disso também anunciei em jornais e na internet.

            Estou agora em um barzinho bebendo uma cerveja pra descontrair. Na verdade faz um bom tempo que estou no boteco e já bebi várias cervejas pra esquecer os últimos acontecimentos em minha vida. Pra esquecer minha noiva, mais precisamente. Olho para o carro, que está bem ali no estacionamento, próximo às mesas do bar. As lembranças chegam de imediato. Principalmente aquelas em que namorava a garota da minha vida, minha noiva. Mas também chegam outras lembranças. Lembranças das outras garotas que passaram em minha vida, quer dizer, que passaram por meu carro. Por isso a pressa em vendê-lo.

            Decido, um tanto relutante, que por hoje basta de cervejas. Enquanto me dirijo ao estacionamento, eu penso a vida é uma tremenda bebedeira, nunca tiro dela outra impressão. Desativo o alarme. Um sistema antifurto sempre é muito importante. Nesse instante percebo a rápida aproximação de um grupo de pessoas. Algumas fardadas. Uma moça, muito parecida com minha noiva, gritou “olhe lá o meu carro” e “foi esse aí mesmo” e “cuidado, ele pode estar armado”. Em instantes eu recebi voz de prisão. Um dos que parecia ser um policial trovejou “você está preso!” e “deita no chão!” e “tem o direito de permanecer calado!”. Mas eu não queria permanecer em silêncio. Eu disse, suplicando, para a minha noiva, agora eu tinha certeza de que a moça do grupo era a minha noiva: “amor, você precisa me perdoar por tudo!” e “amor, não faz isso comigo” e “amor, manda esses caras me soltarem, você precisa superar esses traumas recentes”. Ela fez ouvidos moucos, a minha noiva, eu tenho certeza absoluta de que era minha noiva, não havia como ser outra pessoa. Até hoje não consigo entender isso. E quem consegue entender essa lei da oferta e da procura?
    



Todos os termos em itálico são citações da obra de Fernando Pessoa.

domingo, 25 de novembro de 2012

O que adianta produzir laranjas se os americanos não querem comprar o sumo


                                                                             E eles, existem?      
- Quando eu vejo, existem.
Paulo Leminski (Gozo Fabuloso, DBA, 2004).

Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor.
                                                                                                  João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira, 2005).           
            1.
            O Pai é adepto da monocultura, da monogamia, do monoteísmo.
            2.
         Eu detesto a monocultura, a monogamia e principalmente o monoteísmo. Por isso gosto do catolicismo apostólico romano. O catolicismo com seus Deuses (Pai, Filho, Espírito Santo) e semideuses (Maria Mãe de Jesus e todos os Santos) é mais dinâmico, alternativo e nos oferece lotes mais largos e confortáveis de esperança. No aperto, sempre há a quem rogar.
            3.
            O Pai é dono da lavoura. É ele quem decide o que plantar. Houve uma época em que plantávamos para as pessoas comerem. Uva, abacaxi, manga, melão, mamão, melancia, berinjela, alface, rúcula, almeirão, tomate, cenoura, cebola, beterraba, pepino, chuchu, abóbora, batata, mandioca. Tínhamos o nosso cinturão verde. O nosso cinturão da esperança. Se uma cultura desse prejuízo, era compensada pelo lucro de outra.  Agricultura familiar. Não ficávamos ricos, mas tínhamos lucro.  Depois vieram os modismos: soja, nos anos 80; tabaco, anos 90; agora, a laranja. Não sei por que o Pai insistiu para que fizéssemos agronomia se não aceita opiniões em contrário.
            4.
            Semana passada, estive em Brasília participando de uma manifestação de produtores rurais (produtores de laranjas), a pedido do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Entre reuniões, discursos, panfletagens e outras atividades correlatas e persuasivas ainda encontrávamos tempo para distribuir laranjas às pessoas, nas praças e nos semáforos.  O objetivo era sensibilizar o cidadão comum, mas também os políticos e os assessores dos políticos. Foram caixas e mais caixas de laranjas, cada vez mais caixas, mas com os preços em baixa, pouco nos importávamos. O povo fazia fila para receber pacotes de laranjas. Mas os políticos e os assessores dos políticos não aceitaram  as laranjas de cortesia. A nossa luta era contra as barreiras sanitárias impostas pelos americanos ao suco de laranja brasileiro. O governo deveria intervir, implorar, retaliar, fazer alguma coisa. Tantas barreiras em nossa vida, e essa gente inventa mais uma.
            5.   
           Hoje estou preso em Campo Grande. Aguardo com ansiedade meu Habeas Corpus. Não foi nada sério, apenas espanquei um extraterrestre.
            6.
         Isso mesmo, acredite se quiser, mas espanquei um extraterrestre. Eram altas horas da noite. Eu voltava de uma reunião na minúscula Associação de Produtores de Laranja, na Vila Aurora, Zona Rural de Campo Grande. O tema do encontro era “O que adianta produzir laranjas se os americanos não querem comprar o sumo”. Quando menos esperava, enquanto caminhava, distraidamente, olhando para o céu estrelado, trombei sem querer, numa encruzilhada aqui perto do sítio em que moro, com um desses viventes de outro planeta. No momento em que me dei conta de quem se tratava, não contive a raiva e mandei pancada pra cima do animalzinho alienígena. Foi uma sucessão de chutes e socos que deixaram a esquisita criatura atordoada.
            7.
            Valha-me São José, mas isso tudo é verdade. A vida toda eu ouvindo esses relatos de sujeitos que haviam entrado em contato com os extraterrestres, objetos voadores não identificados e toda aquela charlatanice bizarra, todas essas histórias inverossímeis, difíceis de acreditar, descrença total. Alguém será que poderia me explicar por que apenas os indivíduos que apregoam a existência de tais criaturas são sempre aqueles que conseguem visualizá-los? Por que será que nenhuma pessoa desconfiada, ressabiada com isso tudo acaba encontrando as evidências de vida extraterrestre? Sempre os mesmos sujeitos que trabalham em prol da causa marciana e os mesmos tipos de relatos pouco críveis? Acontece o mesmo fenômeno com os espíritas e os evangélicos, os quais, amparados nas suas respectivas crenças de direito, são os únicos a relatar a existência de espíritos e de demônios. Puta merda, nunca me deparei com um espírito ou com um demônio, e agora eis que a vida me apronta essa faceta e eu dou de frente com um vivente extraterrestre. Mais uma barreira em minha vida. Uma barreira de outro mundo. Mas essa eu ultrapassei com relativa facilidade.
            8.
            Não deu outra. Não levo desaforo pra casa. O sujeitinho guinchou uma linguagem incompreensível, fez uns gestos obscenos para minha pessoa, deu umas risadinhas de soslaio, o deboche era notório, e quando provavelmente pensou que iria ficar assim mesmo, foi aí que eu mandei o primeiro chute bem no peito raquítico do bastardo alienígena. Ele ficou estupefato, não esboçou reação, então aproveitei e desferi outros golpes que acabaram por deixá-lo estirado no chão.
            9.
             Foi aí que tive a infeliz ideia de pegar meu celular e ligar para o corpo de bombeiros.
             Alguns minutos depois e já era possível ouvir a sirene da viatura oficial se aproximando.
            Os americanos e suas barreiras, eu disse e gesticulei para orientar os bombeiros.
            Então dei mais uma olhada em direção ao homúnculo e apenas ouvi mais alguns balbucios que agora penso que possam ter sido algo como “doces ou travessuras?”. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O que é o tempo



A demanda terminará em risos e tu te irás absolvido
Horácio
 
 
Para Cristiane Maluf,
Prof.ª de direito civil,
  deveras.


E na Faculdade de Direito- FADIR eu com a bolsa cheia de livros de literatura, eu carregando (pelo menos três cada dia) e lendo Ulisses (James Joyce), Exortação aos crocodilos (António Lobo Antunes), Todos os fogos o fogo (Julio Cortazar), Da preguiça como método de trabalho (Mario Quintana) A obscena senhora D. (Hilda Hilst) A idade do vexame (Cesar Cruz), O buraco na parede (Rubem Fonseca), Dublinesca (Enrique Vila-Matas) e Os detetives selvagens (Roberto Bolaños), eu que deveria ter vergonha na cara e parar de enganar meus velhos pais que gastam uma pequena fortuna com a mensalidade do curso de direito, eu que na verdade deveria ler livros de Gilmar Mendes (Direito Constitucional) Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil) Maurício Godinho (Direito do Trabalho) Rogério Greco (Direito Penal) entre outros, eu na FADIR com a bolsa estufada de livros de literatura e nenhum de direito, eu que enganava meus pais dizendo a eles que estava me dedicando no curso de direito, quando na realidade estava interessado mesmo em literatura, eu que passava o dia inteiro escrevendo pequenas narrativas, contos e crônicas, e publicando-os num blog na internet, eu que, ao me inscrever no curso de direito, fazia a vontade dos meus velhos pais, ambos advogados de renome aqui em Campo Grande, mas que no fundo gostaria de passar a vida não advogando, mas sim escrevendo livros de literatura, eu que tinha um irmão mais velho procurador da república e uma irmã mais nova juíza federal, eu, o filho do meio, uma negação como se referia à minha pessoa meu irmão, que sempre desejei frequentar uma faculdade de filosofia e também de letras, mas que na verdade não acabei frequentando nenhuma, eu sempre atrasado nos estudos, um nefelibata retardado como dizia minha irmã, eu que na aula de direito civil, me sentindo um peixe fora d’água, à questão peremptória da professora Cristiane: - Ricardo, defina contrato com pessoa a declarar e dê um exemplo, eu distraído e a questão inexorável: - Ricardo, fale um pouco sobre os requisitos da evicção, e eu já evicto e mais uma pergunta – Ricardo, cite as ações cabíveis no caso de ocorrer vício redibitório, eu, humilhado, tendo de apelar, com a voz empolada: - Professora Cristiane, responderei da mesma forma que Santo Agostinho quando lhe perguntaram o que era o tempo: “se não me perguntam, eu sei; todavia se me perguntam, não sei explicar”, então peço licença e saio às pressas da sala de aula, eu, correndo,  saio da FADIR, eu e minha bolsa abarrotada de livros de literatura não combinamos com a FADIR, eu o nefelibata retardado atrasando os colegas pragmáticos que em uníssono saberiam responder todas as questões propostas, então eu peço licença e me retiro da aula de direito civil da professora Cristiane, preciso concluir a leitura do bom e sábio Mario Quintana: Da preguiça como método de trabalho.