domingo, 24 de junho de 2012
Ossos do ofício
Vê se pode? mal saído da adolescência, sem ainda alcançar a maioridade, um dos meus contos apaixonou-se por uma suburbana crônica. E, para meu desespero, resolveram entabular um relacionamento mais sério, morar juntos, mais pra frente ter filhos etc etc. Puta que pariu, ainda tomo fôlego e acabo escrevendo uma novela, ou, melhor, lapido com mais acurácia meus sentimentos e vocábulos e dito uns poemas, melhor assim, antes que saia merda...
A bolsa de valores ou O mercadão da vida
No meu alforje de escrevinhador carrego (todo dia, santo ou não) joio e trigo para negociar na bolsa de valores, preferencialmente no mercado futuro.
Investidor, e não escritor, é isso que sou.
Futuro, esse meu osso a roer.
Fortunas me fortificam, acredite, e cifras me decifram, eu, velho consanguíneo de corsários, eu, velha ossada dos tempos de Ilíon.
Carrego, também, cá comigo, na velha sacola, santos e sanduíches pra vender aos esfaimados.
Meu discurso de vendedor/investidor é bem-te-vi.
Sou um corvo crente de meu sucesso.
E eu prossigo, nessa vida, ifatigavelmente, com acrimônia, espantando os regateadores e apregoando o trigo, o joio, os santos e os sanduíches.
Investidor, e não escritor, é isso que sou.
Futuro, esse meu osso a roer.
Fortunas me fortificam, acredite, e cifras me decifram, eu, velho consanguíneo de corsários, eu, velha ossada dos tempos de Ilíon.
Carrego, também, cá comigo, na velha sacola, santos e sanduíches pra vender aos esfaimados.
Meu discurso de vendedor/investidor é bem-te-vi.
Sou um corvo crente de meu sucesso.
E eu prossigo, nessa vida, ifatigavelmente, com acrimônia, espantando os regateadores e apregoando o trigo, o joio, os santos e os sanduíches.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
Adélia Prado, essa santa milagreira
Para Léia,
minha irmã.
Num certo dia aconteceu o
milagre e ele mudou sua vida. Dali em diante, ela apegou-se a Adélia
Prado como quem se apega a Deus. Mulher é desdobrável. Eu sou. E
cria nas suas santas palavras. Um bálsamo.
Sua bíblia, agora. E comprou todos os livros dela que encontrou em um sebo qualquer. Uma pechincha. Poesia não
tinha valor. Os diamantes são indestrutíveis.
Mais é o meu amor.
Poesia não tinha o devido valor, essa (o)culta
esmeralda. Levou os livros pra casa. Espanou-os.Cuidou deles como quem cuida de um filho, de um marido, de um amigo, de um irmão... Mesinha de centro com Adélia
Prado. Chique. Cult. O mar é imenso? Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos.
Mesinha de centro com Adélia
Prado é a coisa mais fina, última
moda em decoração. A coisa
mais fina do mundo é o sentimento.
Pensou em emoldurar o Casamento,
impresso em folha sépia
e fixá-lo
na sala de visitas, de maneira que o visitante pudesse desfrutá-lo
assim que entrasse. Mas mudou de ideia quando ele, enfim, disse que daria uma rápida
passada lá no
seu apartamento. Amizade ou amor? Melhor não
falar assim de cara em amor. Essa palavra
é luxo.
Pão com ovo
Eu
tenho vários defeitos: baixinho, gordo e calvo, dentes inferiores desalinhados,
em suma, feio.
Os meus defeitos são físicos, os dela são d’alma.
Ela tem essa doença do espírito apelidada de cobiça.
Quer casar com homem rico; e bonito; e culto (culto nem tanto, segundo ela, a cultura de verdade, a alta cultura, é maçante).
Ela tem essa doença do espírito apelidada de cobiça.
Quer casar com homem rico; e bonito; e culto (culto nem tanto, segundo ela, a cultura de verdade, a alta cultura, é maçante).
Esporadicamente, ela me diz: Antônio, você é
um pão com ovo. Me satisfaz, mas eu quero mesmo é um pão com bife e cebolas. Filé,
compreende?
Eu compreendo perfeitamente (o que posso fazer?), e, assim, enquanto ela não atinge suas metas, nós seguimos nossa vida de pequenos burgueses amasiados.
segunda-feira, 4 de junho de 2012
cida cinderela
Eram 22 horas pontualmente quando ela
apareceu no local previamente combinado.
Reconheci-a pela cor da roupa,
vestido azul com discretos tons lilás.
Tudo combinado.
Tudo anteriormente combinado por
telefone.
Ela vinha se aproximando, caminhando
devagar para não perder o passo, esgueirando-se entre as mesas, com cuidado, eu
acho que isso era por causa do sapato de salto alto, que parecia querer destoar
do compasso das pernas.
Ela chegou bem perto da mesa em que eu
estava sentado.
Cida?
Eu não acreditava no que estava
vendo.
Eu mesma.
Não pode ser... Deve haver algum
engano, olhando assim, de longe, parecia ser a Cida que... Mas de perto... Não
pode ser... Você é prima dela, irmã mais velha talvez? A Cida que eu conheci por
esses dias na balada era mais... Digo...
Seu bobo, não seja indelicado, você
estava bêbado naquela noite, mas nem tanto... E eu não sou assim tão feia, de
se jogar fora... Eu tenho minhas qualidades e meus dotes...
Pode ser, mas a imagem que eu fazia
de ti era outra bem diversa...
E como nós ficamos agora, meu bem?
Não ficamos...
Ficamos sim, você finge que
esqueceu... Mas não esqueceu, tanto que quis dar um repeteco...
Eu não sei o que dizer...
Mas eu sei, garçom, duas doses, por
favor!
Que horas são?
Faltam duas horas ainda pra
meia-noite. Relaxa, rapaz, essa noite vai ser um conto de fadas, confie em
mim... Eu confio no meu taco...
domingo, 3 de junho de 2012
o recenseador
Palmtop à mão, ele tocou o
interfone.
Uma rouca voz feminina
atendeu.
Sim?
É do IBGE, ele grunhiu,
somente algumas rápidas perguntas pro censo. Posso entrar? Não vai demorar...
Não pode voltar noutra
hora? Noutro dia?
Senhora, seria bom resolver
isso agora mesmo...
Minhas respostas não farão
a menor falta, minha vida não pode interessar tanto assim ao governo...
Todo e qualquer cidadão é
importante pra nós do governo, precisamos dos seus dados pra... Se quiser, faço as
perguntas pelo interfone mesmo...
Tudo bem, se esse é o seu
trabalho, bisbilhotar a vida alheia em nome do governo, suba, não vou me opor,
responderei a suas breves perguntas olhando bem nos seus olhos...
Um seco estalido anunciou
que o portão automático fora destravado.
Ele subiu a escada
apressadamente, mas não deixou de reparar que havia câmeras de monitoramento
por todo lado. E um jardim amplo, gramado. E uma piscina cuja água azul
reluzia. Tudo limpo. Mas não viu um empregado sequer.
Eram quatro da tarde. Ele tinha
muitas residências ainda antes de completar o ciclo de coleta de dados naquele
bairro. Ele recebia por produção. Aquele era um bairro de classe média alta, as
pessoas eram desconfiadas, com medo de assaltos, sequestros, o serviço não rendia, muitas
vezes precisava insistir e agendar.
E demorou.
Demorou muito.
Arre égua!
Ele desceu as escadas,
cambaleante, suando, com as pernas bambas.
O que era aquilo? Isso era uma mulher?
Na calçada em frente se
recompôs. Ajeitou os cabelos, a calça, o colete azul. Olhou em direção às câmeras. Alisou mais uma vez o cabelo. O cabelo ainda estava desarrumado, bagunçado demais.
O sol já se punha.
Andou em direção à esquina.
Não, precisava voltar, ainda
tinha outra casa antes da quadra seguinte.
Pôs a mão no bolso do
colete.
Puta que pariu!
Cadê o palmtop? Vou ter de
voltar lá?!
Sim?
A mesma voz rouca no interfone.
Eu precisava...
A voz dele saiu embargada.
A patroa está viajando! Volte mês que vem, seu puto, quando ela já tiver retornado...!
Sim?
A mesma voz rouca no interfone.
Eu precisava...
A voz dele saiu embargada.
A patroa está viajando! Volte mês que vem, seu puto, quando ela já tiver retornado...!
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