quarta-feira, 30 de maio de 2012

Lide perdida

Doutor! Eu poderia, na última instância, apelar ao cloreto de etila lança-perfume cheirinho da loló?

e se

e se judas não tivesse beijado jesus e tivesse recusado as trinta moedas e assim não tivesse se enforcado e se os judeus e todos os fariseus tivessem gritado solta jesus e crucifica barrabás e se pilatos não tivesse lavado as mãos e se pedro não tivesse negado três vezes jesus e o galo tivesse se mantido calado e se tomé não tivesse tocado nas chagas pra crer em jesus ressuscitado e se tivesse se ajoelhado e proclamado que acreditava sem precisar de provas e se os escritos sagrados não tivessem sido tão romanceados talvez você não acreditasse assim com tamanha veemência no cristo crucificado e puxa vida que cargas d água de pensamentos minha fé já foi pro espaço.

domingo, 27 de maio de 2012

No departamento de recursos humanos de uma sociedade limitada


           Um pequeno labirinto a enfrentar antes da tão almejada oportunidade. João Silva sentiu o ar enchendo seus pulmões. Respiração, atividade quase imperceptível no cotidiano. Respirar, agora, não era apenas um mero exercício que independia de sua vontade. Respirar para apaziguar o ânimo e renovar as energias. Aspirava a muito mais que oxigênio. Aspirar e expirar antes de adentrar no espelhado prédio repleto de automóveis expostos como se fossem mercadorias frugais de uma mercearia de subúrbio. São tantos, pensou, e quão reluzentes. Essa cera deve ser importada também. Mas não eram simplesmente mercadorias adornadas com o velho selo fetichista do consumo; eram muito mais que meros objetos fungíveis e consumíveis; eram o hedonismo em forma de carros; eram o hedonismo forte como o aço. Entrou pela lateral, como convêm aos empregados, numa porta estreita. Seguiu as recomendações da recepcionista, andou em frente, dobrou à direita, seguiu mais uns quarenta metros, dobrou novamente à direita, e bateu na porta em que se lia, em letras doiradas, Departamento de Recursos Humanos. O corredor que o levou até a sala pretendida era amplo, embora estreito, quase na penumbra, com várias bifurcações, opções de seguir em frente, dobrar à direita ou à esquerda, em suma, uma das tantas galerias de um labirinto. Lembrou-se da Pequena Fábula de Kafka, texto que encontrara casualmente na internet e lera na sala de aula, no dia destinado a leituras internacionais. Ensino médio em escola pública era isso, o aluno mesmo fazia a aula. Todo mundo entrava com sua parte de visão crítica do mundo. Os professores eram os mestres na retransmissão da velha ideologia que os antigos lhes haviam ensinado e também do proselitismo. Dar aula, passar a matéria era o que menos importava.  Kafka? Quem era Franz Kafka?, inquirira o professor de literatura. Fábula não teria sido melhor arrumar uma de La Fontaine? O Lobo e Cordeiro não seria uma fábula verdadeira e mais elucidativa? O homem lobo do homem estava tão em voga ultimamente, dissera. Não precisamos de pequenas fábulas. Precisamos da grandiloquência, do inaudito, mas precisamos de algo transmissível, compreensível, legível, esse Franz me cheira a Neoliberal... Ai de mim, João Silva relembrou a introdução Kafkiana, o mundo a cada dia fica mais estreito...
            O currículo estava perfeito, segundo sua ótica, mas obter a agraciada vaga de vendedor de uma revendedora de carros alemães importados não seria nada fácil. E realmente não foi fácil. Ensino médio, nenhuma experiência anterior, sem referências ou carta de recomendação, nenhum curso técnico. Universidade? Não, ainda não, contava com o emprego para poder pagá-la ou quem sabe conseguir um financiamento estudantil em breve. As cotas raciais também seriam um alento para quem frequentara toda a vida de estudante o claudicante ensino público. Trabalhava pouco mais de 4 anos, desde os 14, na cooperativa de reciclagem organizada pelo pai. Entendo muito de papelão, plásticos em geral, latinha e sucatas, mas percebo que isso não faz a menor diferença e também não é vantagem diante de milhares de candidatos bem preparados. Porém, tenho muita determinação, sei trabalhar em equipe, boa comunicação, sei administrar o tempo de maneira a render no serviço, preciso apenas dessa chance para mostrar meu valor...
            A vaga já foi preenchida, sinto lhe comunicar. Entretanto, arrisco um conselho, rapaz, e de graça, não vou mandar a fatura por isso, aqui é a ignóbil selva dos negócios e do mercado de trabalho. Nesse cenário, competição é a palavra chave. E para competir é preciso estar preparado. É necessário estar no mesmo patamar dos concorrentes e não vai adiantar apelar para as cotas raciais simplesmente porque, aqui, elas não têm vez. Aqui, elas não existem, somente no mundo surrealista do ensino superior público. Aqui, elas soam como um palavrão... E nossos clientes possuem ouvidos sensíveis e principalmente seletivos. Só ouvem o que lhes aprouver...
            Os dedos não estavam mais obedecendo. Ele estava estranho. Talvez fosse a falta de café. Ou talvez estivesse com vontade de apenas ler ou folhear o jornal diário que sempre trazia consigo, embora geralmente não lesse nenhuma vírgula. Ou as pernas torneadas da loira logo ali, sentada à sua frente. Começara a escrever fazia nem 5 minutos. Tinha pressa em concluir o conto que daria título ao livro. No Departamento de Recursos Humanos de uma Sociedade Limitada. Olhou para o atendente que enfim se aproximava com a xícara fumegante. O aroma de café fresco reanimou seu espírito. Ele empurrou o netbook mais para o lado da apertada mesa da lanchonete. Quanta ousadia tentar escrever sem antes sorver o tradicional café. Sempre aquela rotina, nos dias da semana, exceto feriados, em torno das 11h30min ele abandonava o apartamento, atravessava a avenida, dirigia-se à lanchonete, tomava um café, depois redigia um conto ali mesmo, sentado na mesa, com o entra e sai de clientes, alguns já conhecidos de vista, apenas de vista, sem trocas de ideias, apesar das tantas vezes que se esbarravam no local, ali mesmo, sem se importar com a azáfama dos esfaimados e sequiosos à sua volta e dos gritos de pedidos dos garçons, com o tilintar de pratos e talheres, televisão ligada no noticiário esportivo, com os gritinhos exultantes dos colegiais a lanchar após as aulas matinais, com tudo isso e ali mesmo ele digitava seu conto diário. Mas em casa, revisava tudo, muitas vezes reformava todo o enredo, mudava os personagens, retificava o estilo, não se importava em fazer cortes, pelo bem da narrativa e do sucesso dos seus livros. Esse era o seu jeito de fazer literatura e essa era a fórmula que lhe permitia sobreviver com os livros. Os ganhos anuais eram modestos, ainda assim melhor que os demais ofícios. Jornalismo, a sua formação. Mas nunca a exercera. Profissão de risco, ultimamente. Se a informação era repassada com imparcialidade e sem demais interesses, rendia demissões ou processos. Esse era seu ponto de vista. A ficção, por outro lado, não dava muitas preocupações, nem muito dinheiro, ao menos para ele, escritor do portfólio de uma editora mediana, mas ainda assim era compensador, apesar dos parcos leitores assíduos de suas obras. Costumava pensar no produto da sua labuta diária como arte e não como comércio. Por isso caprichava nos motes e na elaboração dos textos e também não costumava se assustar com o cheque mensal magro que o editor costumava lhe repassar. 
            Não era a falta de café que o incomodava. Incomodar não era a palavra apropriada. Eram as pernas torneadas da loira, logo ali, diante de seus olhos, que o faziam desinteressado pela narrativa.  Nunca a vira por lá. Nunca. Essas pernas não foram torneadas em academias de malhação, eram diferentes, como se torneadas naturalmente. Podia ver os loiros pêlos ralos das pernas. O cabelo dourado estava preso por uma única trança à moda medieval. O rosto era largo, mas delicado, com o nariz afinado e os olhos castanhos. Deveria ter de 30, 33, 35 ou quem sabe até 40 anos. Era difícil mensurar. Essas eram as idades perfeitas para as mulheres, conforme suas intuições. De 30 a 40 anos a mulher era mais mulher, mais belas, mais experiente, sensuais, argutas e sábias, nessa faixa de idade. Nesses anos, as mulheres realmente sabiam o que fazer de um homem nos momentos mais íntimos. Sabiam como conduzir uma relação sexual, mesmo aquelas ocorridas casualmente.  Sabiam o momento exato do beijo, dos toques, do êxtase, da explosão. A libido estaria no ápice. E isso mexia com ele, o auge da libido, a libido das mulheres nesse ínterim temporal.
            Ele abriu as páginas do jornal. Deu uma rápida olhada. Pouco lhe chamava atenção . Olhou mais detidamente um anúncio, mas desistiu em segundos. Digitou mais algumas linhas. O conto de hoje precisaria ser mais apurado, afinal seria o chamariz para seu livro. Releu a introdução. Gostou da citação de Kafka. Simpatizou com o título. Havia algum tempo pensara em escrever algo nesse sentido. No departamento de recursos humanos de uma sociedade limitada mais um promissor jovem negro era recusado. Fora recusado não pelas suas pobres qualificações profissionais, mas pela cor da pele. Sabiam que ele era um rapaz com potencial suficiente para rapidamente aprender todos os ardis da arte de vender, mesmo assim não o aceitaram na restrita confraria dos jovens bem empregados profissionalmente. Vender carros importados alemães implicaria em gordas e generosas comissões. Significaria bom salário capaz, inclusive, de permitir que o elemento adquirisse, embora financiado, um automóvel alemão importado.  E isso não seria bom, romperia com o protocolo estabelecido. Não era isso que se ditava na academia dos empresários e dos executivos de sucesso.
            Ela pediu uma salada, algumas folhas picotadas de alface americana, traços de rúcula, finas rodelas de tomate e pepino, um pouco de cenoura ralada e por enfeite um ramo de salsa. Temperou com azeite e limão. Tinha estatura mediana, calculara, talvez 1, 65 a 1,70 metros de altura e vistosas pernas grossas. Vestia uma bermuda branca, não muito curta nem longa, meio termo, e uma blusa creme comportada. Seios eram pequenos, bem protegidos pela blusa. Usava óculos escuros, os quais tratou de tirar assim que entrou no recinto. Também portava um smartphone. Ele pediu mais um café. Adoçou com açúcar mascavo. As pernas definitivamente eram grossas e torneadas e as penugens alvas, quase imperceptíveis. Pensou em se aproximar e pedir licença para sentar. Puxaria um assunto bem humorado, faria alguns gracejos acerca de amenidades do dia a dia das grandes cidades, falaria sobre os últimos acontecimentos do mundo das celebridades, da música, do cinema, da literatura, da moda, da juventude. Ela tinha a sua idade, com certeza ela estaria na faixa dos 30 a 40 anos. Ele dificilmente acertava a idade exata das pessoas, mas comumente acertava dentro de um leque mais aberto de opções. O café não estava tão bom quanto o primeiro. Repensou, não faria gracejos. Não falaria sobre moda nem sobre quaisquer outros assuntos possíveis. Nem convidaria para um happy hour na choperia da esquina. Nem se aproximaria. Não estava acostumado com esse tipo de mulher. Outras mulheres lhe davam atenção. Essa, mesmo que praticamente à sua frente, mesmo sem os frondosos óculos escuros, não o notava.
            Ele anotou um verso, para não perdê-lo. Não era poeta, mas como o conto não estava rendendo, não custaria nada anotar alguns versos sobre a situação vivida nesse dia. Ei-la, a diva devassa/ Vem leve, solta, lassa.  
            João Silva, estudante, jovem, promissor, buscando seu lugar no mercado de trabalho e ele, Pedro Kloch, escritor jovem e promissor, buscando seu espaço no mundo amoroso. Qual deles obteria mais sucesso? Nem um nem outro? Quem estava mais enredado com uma situação intransponível. Qual linha mais tênue e mais difícil de romper? A alvura da pele das pernas grossas e dos cabelos trançados estaria disponível?
            Tocou o smartphone da loira. Ela atendeu discretamente. Fez algumas anotações em um guardanapo. Parecia ser algum endereço. Ele ouviu o número e o bairro. O nome da rua soou estranho, embora tenha ouvido perfeitamente.
            O poema ficou pronto nos instantes seguintes. Estava com pressa. A mulher loira de pernas grossas que lhe enfeitiçara pediu a conta e ameaçou sair em seguida. O poema não era dos melhores. Todavia não era de se jogar fora e não se desperdiça tostões muito menos poemas. Algum dia poderia encaixá-lo em algum conto vindouro. Pensou em usá-lo num enredo em que algum rapaz se apaixonasse por uma prostituta, após uma noite de sexo pago. Fizera-o motivado pela presença feminina da loira, mas os termos não se adequavam necessariamente a ela. Não era para ela, o poema. Até porque não a conhecia, não sabia das suas reais qualidades e defeitos. Ei-la, a diva devassa/ Vem leve, solta e lassa/ Tem a áurea tosca/ Loura flor em botão/ Antes de você minha vida era insossa/ Néscia, sua sutileza me comove/ Despencam as estrelas pra te galantear/ Tem o dom de me fazer flutuar/ Desprendem-se de mim gotículas de suor/ E eu, nas nuvens/ Nas nuvens em forma de cavalinhos de carrossel / Eu prossigo, contigo, nesse trotear incasto.
            João Silva perdeu a tão sonhada oportunidade. Entretanto, sabia, o preço para alcançar seu almejado emprego ainda seria depositado e ele então alcançaria o objetivo. Nada vem de graça. Antes de procurar emprego formal de vendedor de automóveis importados, ganhava a vida reciclando sucatas e tantos outros objetos desprezados pela maioria das pessoas. Agora queria ser diferente. Emprego com carteira assinada, fundo de garantia, salário fixo mais comissões, além de benefícios, plano de saúde entre outros. Não queria mais saber de sucatas, pouco se lhe dava a reciclagem. Cooperativas não davam lucro. O socialismo não estava com nada. Repartir quando se tem tão pouco é loucura, falta de bom senso, falta de razão. Queria vender. Vender carros importados para os bacanas endinheirados. O dinheiro é o que importava, é quem ditava o ritmo alucinante, uma vida sem dinheiro, sem consumo, era uma vida sem oportunidades, como a sua. O que faziam os homens senão produzir, produzir, produzir, vender, vender, vender...Outros compram, compram, compram...Há os que preferem mais comprar a vender; esses, normalmente pensam, acertadamente, que tudo tem um preço, mesmo que às vezes seja um preço imensurável, um preço moral.
            Pedro Kloch deixou passar a chance. Perdeu a loira de pernas grossas de vista. Ela saiu do mesmo jeito que entrou, rapidamente. O smartphone havia tocado mais uma vez. Alguém do outro lado da linha estava com pressa. Ela fez um muxoxo, ajeitou a roupa, pagou a conta e partiu apressadamente.
            Ele olhou o relógio. Eram horas. Salvou os textos digitados e fechou o netbook. Dobrou o jornal e jogou na lixeira ao lado da mesa da loira. Eram horas. O conto seria retrabalhado em casa, no seu escritório, sem as tentações desse dia. O poema provavelmente ficaria esquecido nos seus arquivos e nunca mais veria a luz da tela do seu computador, muito menos seria impresso.
             Demorou, disse uma pragmática voz masculina. Demorei nada, precisava me produzir, respondeu uma lasciva voz feminina, não poderia aparecer aqui assim com aquela roupa comportada. Eu estava em busca da mulher perfeita, novamente a voz de homem. Acho que achei. Amei o seu corpo, principalmente suas pernas torneadas e sua bermuda branca contribuiu muito para isso, realçou o que já era perfeito, atiçou meus fetiches. Mas agora fique sem roupa, quero ver outras penugens...Amor, não compreenda mal, meu bem, disse a loira quase sussurrando, mas primeiro o pagamento. - Trezentos Reais.
            Ei-la, a diva devassa, vem leve, solta, lassa...

Desabafo da mãe


Na adolescência, mamãe desabafou comigo:
- Saudades dos dias da tua infância, daqueles tempos em que tu comportavas-te como um anjinho, bondoso, prestativo, altruísta...
Retruco meu, para mamãe:
- Mãe, bem sabes, eu era o mesmo que Lúcifer antes da queda, um anjo... No entanto, em nossos dias...

sábado, 26 de maio de 2012

Na confluência do Segredo e do Prosa eu arremessei a aliança

Na confluência dos córregos Segredo e Prosa, joguei a aliança de noivado fora. Com certeza ela não serviria mais, pois minha noiva não perdoaria tamanha deslealdade. Eu estava estudando na biblioteca do Horto Florestal, quando recebi a mensagem no meu celular. "Já sei de tudo; três dias sem falar comigo, mas agora já sei de tudo. Que coisa, hem?". Eu saí depressa, respirei com dificuldades por conta da emoção, e não pensei duas vezes, arremessei fora a aliança. Eu e minha noiva havíamos ganho na mega-sena 3 milhões, todavia, como bom filho, permiti que mamãe resgatasse o prêmio e depositasse tudo em uma conta no estrangeiro em nome dela, minha mãe. E agora ela estava passeando na Europa. "Traição imperdoável", ruminei, e não contive as lágrimas quando o Segredo e o Prosa engoliram a aliança.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Os amores réis

Eu tinha costume de ler meus livros com a televisão ligada. Era um velho hábito, adquirido no tempo em que lia meus autores prediletos nos ônibus de transporte coletivo, com a azáfama da vida real a me desentupir os tímpanos. Ainda assim eu os lia, mesmo com o sacolejar e outras intempéries a prejudicar a leitura. Hoje não faço mais isso, mas gosto de ler com o barulho. Foi-se o tempo dos ônibus, da vida ululante nos comboios de gente, ficou a necessidade de barulho para o deleite literário. Por isso a televisão ligada. Mas eu sempre faço ouvido mouco, como nos tempos dos coletivos. Eu disse eu sempre faço, mas dessa vez não consegui me concentrar no livro, após ouvir a notícia televisiva. Eu estava lendo Kafka, O Castelo, com o agrimensor K. tentando, em vão, encontrar o castelão com o intuito de realizar o trabalho para o qual fora contratado, mas diante da notícia, pareceu-me que estava com o livro errado em mãos, embora do mesmo autor. Diante dessa novidade O Processo, com seus bizarros personagens, estava pedindo passagem, ou talvez, por que não, A Metamorfose, com a impressionante transformação matutina do protagonista em uma horripilante barata. Eu fiquei chocado. Haviam sopesado o amor, colocado-o em pratos de balança e tascado uma etiqueta. O amor acabara de ter seu preço remarcado. Antes incalculável, agora com um preço de 200.000 reais. O amor paterno é que tinha estado no banco de réus. E o juiz, ou ministros, não lembro ao certo de tão atordoado que fiquei, com laudos psicológicos atestando a veracidade dos prejuízos advindos da falta dessa espécie de amor, acabaram por mensurar o velho e bom amor na bagatela de 200.000 reais. Sim , o amor agora tinha um preço, e como fora sonegado ao autor da pendenga judiciária, era preciso que fosse pago a fiança de 200.000 reais. Pergunto-me, como será gasto o pedaço de amor agora assegurado pela justiça, o amor de 200.000 reais. Viagens? Carros? Apartamento? Doação para a caridade? O amor esse objeto agora materializado, cristalizado num cheque de 200.000 reais. E reluz, o amor valorado em 200.000 reais. Olho para o lado, visualizo minha estante de livros. Dirijo-me a ela. Letra F de Franz Kafka, o mesmo a quem fora negado, na vida real, o amor paterno e ainda assim, em seu O Processo, com seus personagens toscos, o amor não fora objeto de disputa judicial. Letra F de Franz Kafka, aquele que escreveu outro livro nominado Nas Galerias, em que se lê, logo na primeira página "Há muita esperança, só não para nós". Penso na azáfama ululante da vida real nos ônibus coletivos, nesse alarido que não tem preço. Fecho O Castelo. Já sei o final. K. não encontrará o castelão. Nesse livro, o enredo Kafkiano não tem fim, termina no meio da narrativa. K dirige-se mais uma vez ao Castelo e. O amor espontâneo e

anunciação de Maria


            Ultimamente, minha vida resume-se a alguns suspiros esparsos. Um aqui, outro acolá. Saudades? Talvez. Não digo sim, nem não.
            Autômato que sou, tenho ruminado: “ah, Gabriel, pobre de ti, impotente que és”.
            Lembranças. Apenas mais algumas lembranças. Mais uma tênue cortina de fumos do passado querendo se fazer presente. Algum romancista famoso teria alguma imagem ou metáfora prodigiosa para descrever esses momentos. Eu não as tenho, nem a metáfora, tampouco a imagem. Tenho os fatos, meus enfadonhos dias que teimam em suceder um ao outro.
            Maria disse-me naqueles dias fatídicos: ... “além do mais, nosso casamento não teve legitimação civil, tampouco religiosa”.
          Esse diálogo vil, eu tentei redirecionar, quando Maria fez tal anunciação, contudo fracassei.
            Agora eu penso, mais um dos tantos fracassos da minha vida.
            Naquele instante, o da anunciação, eu fiquei sem argumentos plausíveis, como se meu cérebro estivesse enferrujado. Autômato que era, e que continuo sendo, a única atitude que fui capaz de promover resumia-se numa paráfrase de um poeta laureado, Manuel Bandeira.
            Ah, nada como cair na rede das célebres frases alheias, isso tudo para não deixar vir à tona nossa mediania, nada melhor que citar outrem, sobretudo os de fama estabelecida, uma vez que nos poupa tempo, evita frustrações, devido à verve enferrujada, pouco estimulada.
            “Maria, se o indivíduo botou banca de sentimentalista em cima de ti, e te jurou amor do tamanho de um bonde, se ele chorou, se ajoelhou, se rasgou todinho, não acredita, não, Maria, é lágrima de novela, tapeação, enganação, te manda, Maria!”
            Naquele momento, Maria fez ouvido mouco. Disse-me: “Não tivemos sequer um filho. Tudo que pedi a ti nessa vida foi um varão capaz de mudar o mundo, e não foste capaz, Gabriel. Tu que gostas de declamar versos, odes, trovas e canções, essa boa nova não tiveste coragem de me anunciar. Nossa separação só não é explícita pelo fato de ainda residirmos sob o mesmo teto. Além do mais, nosso casamento não teve legitimação civil, tampouco religiosa”.
            Tristeza.
            Maria partiu para Belém do Pará, com um carpinteiro.
            E eu fiquei aqui, nessa carpidação.
            Autômato que era, e que continuo sendo, me chafurdei nos clássicos. Recitei, como se fosse um salmo, naquela noite, inúmeras vezes: “mulher, não ames, quando a teus pés um homem terno e curvo jurar amor, chorar pranto de sangue, não creias, não, mulher, pois ele te engana! As lágrimas são galas da mentira e o juramento manto da perfídia”.
            Refeito do drama? Talvez. Não digo sim, nem não. Autocomiseração? Pra que pensar nessa hipótese?
            Autômato que sou, continuo ruminando.
            “Ah, Gabriel, pobre de ti, impotente que és”.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

coroação

Meu irmão disse "só saio daqui se puder tomar uma coca hoje". "Hoje é dia de festas". Isso foi no dia de finados, no cemitério, e meu irmão havia deitado em cima do túmulo da Mãe. Disse também "vou ser a coroa de espinhos da Mãe". Pai corrigiu "coroa de flores". Meu irmão teimava "coroa de espinhos". Pai pagou uma coca no bolicho. Meu irmão fazia estágio de chantagista. Pai comprou também bolitas, a pedido de meu irmão, embora relutasse. Meu irmão disse "vidro velho reciclado". Meu Pai "bolita". Meu irmão "vidro velho reciclado". Meu irmão fazia progressos no estágio. Outro dia meu irmão disse "estátua de anjinho de cemitério é que deve ser feliz". Eu discordei "não toma uma coca em dia de festas". Meu irmão concluiu "nem joga vidro velho reciclado". Ele disse isso foi no dia em que vovó morreu. Meu irmão estava com ciúmes de mim porque Pai me incumbira de levar, à frente do caixão e do séquito, a coroa de flores enviada pelo Prefeito. Segundo meu irmão, carregar coroa de flores à frente do caixão e do séquito era honraria demais para um energúmeno feito eu.

palavras poesia palavra poesias

palavras me atropelam a todo instante
são rolo compressor
eu, vento redemoinho torre de pisa palavreado
apesar de conhecer tantas, me sinto só?
diante da poesia posso ser poeta passatempo encruzilhada palavra cruzada
diante das pessoas jasmins
meu reinado é de palavras
meu dízimo é o verbo
somente dou o que tenho em demasia adjetivos
a adjetivação me acalma conta fábulas para eu despertar
o horizonte de meus poemas é oco e ocupado por mim
escrevo guloseimas e baboseiras
mas não sou adocicado
sou adjetivado
poesia me deixa amar
e ser czar
na poesia sou eu mesmo
e não sou
sou tal qual meus talvezes
dicionários me robotizam
e ruborizam
o horizonte de meus poemas sou eu mesmo
e eu sou ocupado por mim
e sou o culpado
apesar de conhecer tantas sou só?
a poesia me refaz
sou um ente adjeto, sem termos sem teto?
diante da poesia posso dizimar
meu dízimo é a palavra
somente dou o que tenho em demasia poesia
e a poesia me rio-faz
e rio da poesia
e rio de mim
e rio
e
palavras me atropelam a todo instante

Audácia de inquirir

Não estaria o Cristo Redentor farto de tanto pão de açúcar?

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Sempre ouço o Mestre Quintana



- Então quer dizer que nem sempre a poesia é bucólica?
- Exatamente.
- E todos os poemas necessariamente são de amor?
-Isso mesmo.
- Acerto em dedicar meus poemas apenas para as desavergonhadas?
-Perfeito.
- E para as comportadas?
- Recomendo as trovas dos medievais cavaleiros errantes, aqueles príncipes, que, escanchados em cavalos brancos, abandonam seus sombrios castelos e partem em busca das belas adormecidas...

terça-feira, 15 de maio de 2012

Palestrante no banco de réus


- Meritíssimo, perdoe os termos impróprios para o ambiente, mas caguei para a garantia da não autoincriminação! Agora, aqui jaz, sob um conspícuo monte de merda, o sacrossanto princípio da não autoincriminação!
- Devo adverti-lo, a confissão em juízo é prova irrefutável, entretanto se feita espontaneamente, atenua a pena...
-Sim, todavia o que são os atenuantes diante de um motivo fútil ou torpe... Caguei e andei para os atenuantes e tudo mais...
- Então o réu esclarecerá as circunstâncias do crime?
- Sim... Navalha em riste, fui direto na jugular. Degolei-o com apenas um golpe.
- Quais os motivos?
- Ele sempre tinha respostas para as minhas perguntas retóricas...

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Dançarino


Há muitos anos, onde eu morava naquela época, havia dois lugares para meninos se banharem, mergulharem, darem piruetas no ar e depois caírem de ponta na água: o arroio Dançarino, para os meninos pobrezinhos, e, para os garotos riquinhos, a Sociedade Recreativa Lago Azul, vulga piscina. Eu, menino pobrezinho, muitas vezes, tive inveja, para não dizer raiva, dos garotos riquinhos que podiam se divertir no Templo da Recreação, a Piscina. Mas, quando os garotinhos ricos se enfastiavam daquela monotonia azul, sem correntezas, sem incertezas, vinham se alegrar com os meninos pobres nas águas do Dançarino. E o Dançarino, ah, sim o Dançarino sempre os acolhia com júbilo, pois, como ele mesmo me cochichava, eles, os meninos ricos, também eram filhos de Deus e mereciam certas dádivas. Hoje, dou Graças por não ter mergulhado naquelas águas cheias de cloro. O cloro poderia corroer a singeleza do meu espírito.
         Meu irmão pensava de outro modo: - Por causa do Dançarino, minhas cuecas estão sempre encardidas!  

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Flores para Mara




Eu só tinha olhos para Mara. A minha vida ficou mais alegre e decidi abandonar certos hábitos, desde o dia em que ela mudou-se para o sobrado em frente ao meu. Ela era muito engraçada, levava a vida energicamente, com frenesi, como se costuma dizer por aí, e o mais importante, ela tinha um belo par de coxas e olhos esverdeados. Com toda certeza fazia o meu tipo. Eu sabia desses detalhes porque eu só tinha olhos para Mara, quase literalmente. Depois da sua mudança, nos dias que se seguiram, por causa da mania diária dela de malhar na sacada, eu acabei comprando um binóculo última geração. Eu realmente só tinha olhos para Mara. Apelidei-a de antílope. Ela era a minha bela e fagueira antílope na savana. Eu pretendia dizer bela e fagueira antílope na sacada, mas aí iria perder o frescor da imagem. Todo santo dia eu a observava. Logo cedo, quando ela aparecia lá pelas 7 da manhã, eu já estava a postos, com meu binóculo moderno, capaz de ver inclusive a alma do ser observado. Esse era o meu objetivo, na verdade. Eu queria ver a alma da Mara, entende. O doutor consegue ver a alma das pessoas? Sabe, o âmago? Mas sem binóculos? Sei... Está bom, finjo que acredito nessa conversa mole... Nos dias em que ela se atrasava um pouco, eu já sabia o que fazer, sabia que a arguta antílope, sorrateiramente, havia me deixado na mão e partido rumo às suas não comuns caminhadas matinais. Isso não me agradava nem um pouco, me obrigava a abandonar a minha trincheira e me expor. Mas eu tinha uma bicicleta, e logo descobri que o trajeto era sempre o mesmo. Então não demorava muito e eu a alcançava com certa facilidade. Mas desse jeito definitivamente eu não gostava, embora fosse nesses dias de caminhada que tivera pela primeira vez a sensação de estar vendo a minha antílope. Antes, observava apenas uma bela fêmea humana. Sim, agora, via a minha bela e fagueira antílope na savana. Entretanto, foi num desses dias de caminhada que o nosso caso se alongou, criou pernas, virou um triângulo amoroso. Daí é que lhe digo, concluo que é por isso que eu odiava as caminhadas de Mara. Sempre havia os atirados, aqueles que não perdem a oportunidade de ver uma mulher bonita e logo cospem as suas velhas e surradas cantadas matinais, de certo que ainda impregnadas com a meleca que se formou à noite em seus lábios... Mas não sou desses, como o senhor já deve ter percebido, fico na minha, não sou parvo como esses, não dou bandeira, tenho meu estilo pra ganhar minha gata. Agora digo gata por força do hábito, mas seria a minha bela e fagueira antílope. Doutor, eu estava preparando o terreno, fazendo a minha parte. Mas como o senhor sabe, entrou em cena a Maria da Penha, então eu fiquei um pouco preocupado. Eu tenho experiência nessas empreitadas, mas dali em diante eu percebi que não valia a pena. Nada vale a pena se alma não é pequena, o senhor conhece bem o ditado popular, não é mesmo...? Conhece sim, eu sei, eu lhe conheço de outros carnavais, bem sabe, por isso lhe asseguro, está ciscando no terreno errado, perdeu o faro, me parece agora, vendo-o assim, tão sem rumo, sem noção, antes já vinha com algum ás na manga, mas até agora só lançou fruta verde, e a velhaca raposa aqui só come uvas maduras, bem sabe... Digo raposa, nem precisaria dizer, porém o que o senhor procura, o velho leopardo na savana, lépido e carnívoro, com caças de antanho entre dentes, a formar o amarelo dos incisivos, não está mais atuando... Desde a chegada de Mara perdeu os velhos hábitos, até o hálito melhorou, veja...
    - Doutor, nego veementemente, não matei Mara! Olhe essas fotos direito, logo vai perceber, não costumo deixar restos... Olhe essas fotos direito...
    - Droga, quanto custa uma coroa de flores?

sábado, 5 de maio de 2012

Poeminha astuto

Montei um poeminha na mente. Já tinha quase decorado-o. Tinha, não tenho mais. Mirradinho, cabia todo num período só. Esqueci-o, antes de apontá-lo. Narcisista que sou, bem sei, pretendia declamá-lo, por isso a minha frustração. Mas estou tranquilo, tenho certeza,  ele retornará em um ato-falho.