domingo, 26 de agosto de 2012

Jundiá

Alexandre, o grande, era bolicheiro e vendia cachaça e vermouth pros lavradores, lá na Vila Auriverde. Vendia mais cachaça que vermouth. Vermouth somente nos sábados. E do branco. Alexandre, o grande, tinha um maverick e um irmão de cognome Jundiá. Jundiá bebia cachaça e vermouth com os lavradores. Mais vermout que cachaça. Jundiá, sempre que lhe dava na veneta, furtava o maverick e dava voltinhas na vila. Mas Jundiá não tinha carteira de habilitação e comumente colidia o automóvel do irmão em algum obstáculo. A vida de Jundiá era cheia de obstáculos. De tanto sofrer reparos na lataria, Jundiá apelidou o maverick de lasanha. Só tem massa, dizia. Essas afrontas, Alexandre, o grande, não tolerava e ordenava aos seus capangas que dessem um susto no irmão. O susto era uma surra de açoite. Todavia Jundiá era amigo de toda gente, inclusive dos capangas do irmão e nada lhe sucedia, ou quase nada. O comissário de polícia da vila também não morria de amores por Jundiá. Por isso, semana sim semana não Jundiá fazia uma visita ao xilindró da cidade, por dirigir sem habilitação e/ou embriagado. Jundiá, embora lavrador, quase nunca trabalhava, mas sempre tinha dinheiro. Quase nunca tomava banho, mas namoradas não lhe faltavam. Quando chegava nos bailes de sábados na vila, os músicos ofereciam, de imediato, uma música pra ele dançar. Nos botecos, tinha crédito ilimitado, menos no do irmão Alexandre, o grande. Muita gente se perguntava de onde Jundiá tirava tanto dinheiro. Diziam, alguns, que ele tinha um pacto com o demo. De fato, nos cultos evangélicos, ele, às vezes, adentrava só pra proclamar que aquilo tudo que fora apregoado até então era mentira, tudo mentira. Algumas vezes, nas exorcizações, concitava, com veemência, satanás a resistir à tirania dos crentes que desejavam expulsá-lo dos corpos possuídos. No jogo do bicho, ganhava constantemente, o que aguçava ainda mais o imaginário popular. Jundiá se irritava muito quando lhe diziam que deveria seguir o exemplo do seu irmão Alexandre, o grande. Franzia o senho e dizia a vida é cheia de obstáculos. A vida é cheia. Jundiá e suas frases de efeito. Alguns desavisados, certo dia, quiseram que Jundiá se afiliasse no partido político e concorresse a vereador nas próximas eleições. A eles Jundiá nada disse, apenas os tratou com desdém. A vida é cheia de obstáculos. A vida é cheia.  

sábado, 25 de agosto de 2012

Falácia brasileira


 
        MP.

        Ele recebeu uma encomenda inopinadamente. Totalmente inesperada.

         Hoje à tarde, 13 horas em ponto, o carteiro lhe entregou o pacote de sedex tamanho médio, com várias voltas de fita de empacotamento transparente lacrando a caixa, a denotar que o conteúdo deveria ser precioso ou frágil. Deveria ser em mãos próprias, da forma que viera carimbado pelos correios, explicitamente, em caixa alta: MP.

        - Documento de identidade, por favor, grunhiu o estafeta estatal.

        - Bom rapaz, agora assine aqui, nome completo, e sem abreviaturas.

        Assinou, por extenso, Ezra Fagundes, com letra tremida, porque o papel estava numa prancheta estendida pelo carteiro.

        Ao dar o visto do recebimento, pensou em anotar, a título de complementação, profissão: escritor. Tempos atrás, teria de anotar servidor público federal, do Ministério do Planejamento, cargo comissionado, com orgulho.

        Não fez nada disso.

        Ponderou se essa informação adicional não seria motivo de pilhéria posterior, por parte do entregador da encomenda.

        Escritor, como isso seria possível, se o nome transcrito era desconhecido, diria, rindo à socapa, era preciso relatar tamanha soberba aos colegas de ofício. Escritor é uma profissão? É evidente que não. Carteiro era uma profissão. Escritor, salvo de novelas televisivas, jamais. Haveria alguém a ganhar o pão, neste país, que tivesse a ousadia de intitular-se escritor?

        O carteiro já se fora, quando percebeu que não havia indicação de remetente.

        Remetente?

        Ninguém. Sequer um nome abreviado, logradouro ou código de endereçamento.

        Ezra acentuou o rosto contrariado. Isso era uma afronta.

        Primeiro, a importunação do carteiro, na santa insistência de entregar o pacote em mãos. Poderia tê-lo entregue ao porteiro do prédio. Preferiu seguir as regras dos correios. MP. Mãos próprias.

        Segundo, a ausência de remetente na encomenda. Agora, as normas de postagem de correspondências foram violadas. Principalmente nesse caso, por ser uma remessa importante, serviço especializado, entrega expressa.

        Deixou-a de lado por alguns instantes.

        Foi à geladeira, bebeu dois goles de água. Depois, ao banheiro. Lavou o rosto. Fez cara de mau, no espelho. Lembrou-se da fisionomia do carteiro. Um sujeito bonachão. Não teria coragem de debochar de um cliente que ajuda a pagar o seu salário. Teria?

        Novamente a geladeira. Um refrigerante de cola e cafeína, para acordar. Esse não era o horário habitual de estar em pé.

        Escritor, deixou escapar.

        Fazia 5 anos que entrara nesse ramo, nessa profissão. Abandonando o emprego anterior de funcionário público do Ministério do Planejamento. E há cinco anos buscara, em vão, seu espaço, no concorrido mundo literário. Apenas livros medianos, personagens medianas, vendas medianas. Contos. Célula unívoca. Personagens se preparando para o clímax. Enredo curto. Falta de fôlego. Um romance, sua aposta para romper o ostracismo.

        Abriu o pacote, de uma só vez.

        Um livro. Um belo livro. Novo, cheirando à tipografia, brochura, capa negra, folhas estilo sépia, o título escrito em letras douradas.

        Folhou-o: 512 páginas, todas em branco.  

        No centro, uma folha avulsa, solta.

        MP.

        Mãos próprias. Deverás escrevê-lo em mãos próprias.

        Falácia brasileira, o título.

        Dou-te apenas a senha do sucesso: Falácia Brasileira. Tu já tens o resto. Não precisas de mais nada, além da marcha e do incenso da vitória.

        Siga as instruções de uso e terás o resultado que em delírio algum poderias imaginar.

        Serás o 1º escritor brasileiro a levar a láurea cobiçada, o Nobel de Literatura.

            Ezra Fagundes coçou o nariz, passou a mão na cabeça, apertou a nuca por alguns segundos. Não fosse o gigantesco MP logo após o seu nome, carimbado na caixa, não acreditaria que a encomenda deveria ter sido retirada em mãos próprias.

        Não perdeu tempo, com as próprias mãos, a lápis, redigiu o seu discurso da solenidade de entrega da premiação do Nobel de Literatura.

        Depois, foi para a internet pesquisar, precisava saber e já quanto daria o prêmio em moeda nacional.

 

 

sábado, 11 de agosto de 2012

Crianças

Sol a pino, 40º C, megafone empunhado, o publicitário, pastor de ovelhas sequiosas, incansável, anuncia a boa nova aos dizimistas  "deixai vir a mim as criancinhas", esse é o lema "deixai vir a mim as criancinhas", eis o engodo "deixai vir a mim as criancinhas", um outdoor gigantesco "viver é gostoso", logo "deixai vir a mim as criancinhas", o megafone calibre 38, fumegante, em punho e "olhem a alegria das crianças de escola pública ao adentrarem no ônibus da coca-cola, que as conduzirá a uma visita à fábrica", o megafone "reparem na alegria", o megafone, o publicitário, o pastor de ovelhas anuncia a boa nova aos dizimistas "para beberem coca as crianças de escola pública vão à fonte, à fábrica, o megafone " as das escolas privadas precisam ir à cantina", mas o megafone rouco "as crianças das escolas privadas também vão à fábrica da coca-cola a passeio". Enquanto o megafone pigarreia e limpa a garganta com um gole d' agua, cristalino, o acólito suspira, entediado, "eu sei que as crianças de escola privada também vão à fábrica da coca a passeio, mas não alegres", o acólito, aproveitando a distração do megafone, o acólito "por que será que os bois e as vacas sobem tão tristemente nos caminhões boiadeiros", o acólito "a que lugar vão passear as crianças de escola pública do árido nordeste brasileiro?, o acólito, observando o megafone sorver diáfanos goles de água, "vão às cacimbas e às cisternas beber água?, o acólito "mas há gente como os bois e as vacas que ainda sorvem água?", o megafone fazendo gargarejo "deixai vir a mim as criancinhas" e depois "estendem aquela faixa, pichem os muros, porque coca-cola é muito gostoso".

domingo, 5 de agosto de 2012

Meu amor à prova de antivírus - 3ª parte


              Juca,

            Machado de Assis por certo que tinha razão ao anunciar ao vencedor as batatas, mas no seu caso deveria ser ao vencedor as bocetas, falo isso porque, como você não toma coragem (e juízo, e vergonha na cara e sensibilidade) de me contar suas últimas conquistas amorosas por meio do caminho mais curto, a internet, falo da Piu-piu (aquela loira bombada) e também da Red Apple (a ruivinha metida a intelectual, poetisa e o escambal), eu resolvi pôr o dedo na ferida e tocar no assunto, já que pior que esse seu silêncio sufocante não vai ficar, já que você, agora que reside na sua bolha erótica e agora (justo agora) os ventos da conquista enfunaram suas velas (e também sua rola), me brindou com seu desdém, agora que resolveu não mais cuspir e gozar naquela que já comeu, então eu resolvi aproveitar o ensejo, a deixa que você não me deu e dizer que tudo bem, mesmo que não me pediu desculpas, mesmo assim eu te perdoo, não tem nada não, nosso caso é diferente, não fizemos juras de amor e sim juras de amizade, que é muito mais que amor, esse pseudo sentimento inventado pelo cristianismo e pelo romantismo, essas escolas escrotas que só souberam deturpar e mascarar a verdadeira essência da humanidade.

            Pode continuar suas aventuras no seio da internet, isso não me ofende, já que nunca lhe cobrei fidelidade. E se esses relacionamentos, como o nosso, saírem do mundo online e se tornarem realidade, então que sejam eternos enquanto durem, e pra você deixo meu recado, meu não, de Machado de Assis, Grande Lascivo, espera-te a voluptuosidade do Nada!

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             Lena,

            Lena, Lena, minha gatinha levada, pare de rosnar, caso contrário se transformará numa criatura híbrida, feia, repulsiva, etc etc, não é assim que as coisas funcionam, não fale sobre o que você não sabe, meu bem. O período em que caí convalescente foi de grande serventia para mim, me fez refletir em tudo o que tem acontecido em minha vida, e, para minha surpresa, era exatamente o que não deveria ter acontecido, isso tudo, entre mim e ti, surtiu um efeito indesejado, efeitos colaterais diversos, e o mais preocupante é essa ideia que se apossou do meu ser em que penso ser possível e estar ao meu alcance qualquer tipo de conquista, seja ela no campo amoroso ou no profissional. No campo profissional, e isso você não mencionou, minha carreira literária de repente deslanchou. Digo carreira, mas acho que dizer que venci, enfim, um concurso literário, concurso de contos da Playboy, que recebi de prêmio um “automóvel último modelo e que anda comigo apinhado de pândegos e de putas” (Fernando Pessoa), acho que isso não é exatamente uma carreira literária, todavia as coisas estavam indo, FINALMENTE,  às maravilhas, conforme havia um dia sonhado, mas não é assim que penso hoje; no campo amoroso, como já sabe, surgiram a Piu-piu, advogada paulista, que não sei como descobriu meu e-mail e atamos, então, de imediato, sem meias e sem peias, um relacionamento sem compromissos, sexo casual, já que ela tem clientes em Campo Grande, embora atue mais em São Paulo, mas já passou, foi eterno enquanto durou, ela está em outra, digo outro, acho que não gostou da divulgação do meu nome na mídia, e ficou com medo (do marido?) de ficar com sua imagem associada a um escritor de contos eróticos, enfim, depois a Red Apple, essa ruivinha me deu mais trabalho, no bom sentido, no bom sentido pra mim, no caso, porque a garota realmente fazia jus a lenda de que as ruivas são depravadas e fornicadoras, o que foi gostoso por certo período, porém depois de uns dias seguidos com ela querendo todo santo dia, pedindo mais e mais e mais, puta merda, foi a gota d’agua, o fim da picada, ou o fim da minha pica, que se afinou, encolheu, eu não quis mais, perdeu o encanto, essas coisas se desgastam depois de certos anos de uso, sabia? Pois é, disso tudo concluo que a minha vida deu uma guinada de 360° como se diz por aí, e, o mais importante, perdi minha paz de espírito, ando agora dando entrevistas (recebi outro prêmio essa semana noutro concurso bem prestigiado de contos lá do Paraná, concurso Paulo Leminski, que me rendeu boa grana também) e teve, inclusive, gente me seguindo para me fotografar, vê se pode, até taxista já me reconheceu... Lena, não quero isso pra minha vida, essa azaração, para usar um termo mais moderno, essa curtição pra mim já deu o que tinha que dar, não posso ficar nessa por mais tempo, não aguento mais, então essa é a principal razão da minha sumida, do meu “silêncio eloquente”, já que essa sucessão de fatos e acontecimentos me envolveu por completo. Não quero mais, sinto muito. Não digo adeus porque não é definitivo. Não digo adeus porque permanecerá a amizade, a qual era a principal razão de nosso envolvimento. No entanto, pra continuar no terreno da contradição: Adeus!