E
eles, existem?
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Quando eu vejo, existem.
Paulo
Leminski (Gozo Fabuloso, DBA, 2004).
Tem
diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo,
este vosso servidor.
João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas,
Nova Fronteira, 2005).
1.
O Pai é adepto da monocultura, da monogamia,
do monoteísmo.
2.
Eu detesto a monocultura, a
monogamia e principalmente o monoteísmo. Por isso gosto do catolicismo
apostólico romano. O catolicismo com seus Deuses (Pai, Filho, Espírito Santo) e
semideuses (Maria Mãe de Jesus e todos os Santos) é mais dinâmico, alternativo
e nos oferece lotes mais largos e confortáveis de esperança. No aperto, sempre
há a quem rogar.
3.
O Pai é dono da lavoura. É ele quem
decide o que plantar. Houve uma época em que plantávamos para as pessoas comerem.
Uva, abacaxi, manga, melão, mamão, melancia, berinjela, alface, rúcula,
almeirão, tomate, cenoura, cebola, beterraba, pepino, chuchu, abóbora, batata,
mandioca. Tínhamos o nosso cinturão verde. O nosso cinturão da esperança. Se
uma cultura desse prejuízo, era compensada pelo lucro de outra. Agricultura familiar. Não ficávamos ricos, mas
tínhamos lucro. Depois vieram os
modismos: soja, nos anos 80; tabaco, anos 90; agora, a laranja. Não sei por que
o Pai insistiu para que fizéssemos agronomia se não aceita opiniões em
contrário.
4.
Semana passada, estive em Brasília
participando de uma manifestação de produtores rurais (produtores de laranjas),
a pedido do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Grande, Mato Grosso do
Sul. Entre reuniões, discursos, panfletagens e outras atividades correlatas e persuasivas
ainda encontrávamos tempo para distribuir laranjas às pessoas, nas praças e nos
semáforos. O objetivo era sensibilizar o
cidadão comum, mas também os políticos e os assessores dos políticos. Foram
caixas e mais caixas de laranjas, cada vez mais caixas, mas com os preços em
baixa, pouco nos importávamos. O povo fazia fila para receber pacotes de laranjas. Mas os políticos e os assessores dos políticos não aceitaram as laranjas de cortesia. A nossa luta era contra as barreiras sanitárias
impostas pelos americanos ao suco de laranja brasileiro. O governo deveria
intervir, implorar, retaliar, fazer alguma coisa. Tantas barreiras em nossa
vida, e essa gente inventa mais uma.
5.
Hoje estou preso em Campo Grande.
Aguardo com ansiedade meu Habeas Corpus. Não foi nada sério, apenas espanquei
um extraterrestre.
6.
Isso mesmo, acredite se quiser, mas
espanquei um extraterrestre. Eram altas horas da noite. Eu voltava de uma
reunião na minúscula Associação de Produtores de Laranja, na Vila Aurora, Zona
Rural de Campo Grande. O tema do encontro era “O que adianta produzir laranjas
se os americanos não querem comprar o sumo”. Quando menos esperava, enquanto
caminhava, distraidamente, olhando para o céu estrelado, trombei sem querer,
numa encruzilhada aqui perto do sítio em que moro, com um desses viventes de
outro planeta. No momento em que me dei conta de quem se tratava, não contive a
raiva e mandei pancada pra cima do animalzinho alienígena. Foi uma sucessão de
chutes e socos que deixaram a esquisita criatura atordoada.
7.
Valha-me São José, mas isso tudo é
verdade. A vida toda eu ouvindo esses relatos de sujeitos que haviam entrado em
contato com os extraterrestres, objetos voadores não identificados e toda
aquela charlatanice bizarra, todas essas histórias inverossímeis, difíceis de
acreditar, descrença total. Alguém será que poderia me explicar por que apenas
os indivíduos que apregoam a existência de tais criaturas são sempre aqueles
que conseguem visualizá-los? Por que será que nenhuma pessoa desconfiada,
ressabiada com isso tudo acaba encontrando as evidências de vida
extraterrestre? Sempre os mesmos sujeitos que trabalham em prol da causa
marciana e os mesmos tipos de relatos pouco críveis? Acontece o mesmo fenômeno
com os espíritas e os evangélicos, os quais, amparados nas suas respectivas
crenças de direito, são os únicos a relatar a existência de espíritos e de
demônios. Puta merda, nunca me deparei com um espírito ou com um demônio, e
agora eis que a vida me apronta essa faceta e eu dou de frente com um vivente
extraterrestre. Mais uma barreira em minha vida. Uma barreira de outro mundo.
Mas essa eu ultrapassei com relativa facilidade.
8.
Não deu outra. Não levo desaforo pra
casa. O sujeitinho guinchou uma linguagem incompreensível, fez uns gestos
obscenos para minha pessoa, deu umas risadinhas de soslaio, o deboche era
notório, e quando provavelmente pensou que iria ficar assim mesmo, foi aí que
eu mandei o primeiro chute bem no peito raquítico do bastardo alienígena. Ele
ficou estupefato, não esboçou reação, então aproveitei e desferi outros golpes
que acabaram por deixá-lo estirado no chão.
9.
Foi aí que tive a infeliz ideia de pegar meu
celular e ligar para o corpo de bombeiros.
Alguns minutos depois e já era possível ouvir
a sirene da viatura oficial se aproximando.
Os americanos e suas barreiras, eu
disse e gesticulei para orientar os bombeiros.
Então
dei mais uma olhada em direção ao homúnculo e apenas ouvi mais alguns balbucios
que agora penso que possam ter sido algo como “doces ou travessuras?”.