Até hoje, a maior honraria da
minha vida foi ser chefe dos sacristãos, na igreja católica da minha cidade
natal, São Paulo das Missões.
Nunca exerci tamanha
responsabilidade.
Nunca me senti tão importante
como naqueles dias.
Nunca exerci cargo com tamanha
desenvoltura e dedicação.
No princípio, era Deus no céu e Antônio na Sacristia.
- In nomine patris et filii et spiritus sancti et Antônioooo!
A irmã Irene, coordenadora da
equipe dos coroinhas da paróquia, depositava na minha pessoa a maior confiança
do mundo católico.
-Antônio, sob este teu lombo
largo de anta carregarei essa sacristia toda.
-Antônio, tu bem sabes, quanto
melhor a mula de carga, mais carga para ela. Não vai me decepcionar!
Às vezes eu me atrasava:
- Antônio, enxuga esse suor,
que vai borrar sua camisa branca!
- Antônio, sua camisa branca
não está engomada!
-Antônio, sua camisa branca está
com dois vincos!
-Antônio, sua camisa branca está
amarela!
-Antônio, tu estás amarelo, o
que andas a fazer nas horas de folga?
Na minha visão, nem o Padre detinha
tamanha responsabilidade perante a comunidade.
Certo dia, na porta da
sacristia, deteve-me certo cidadão de cabelos longos e que se expressava num
dialeto estranho, do tipo aramaico, cuja face esquerda, e também a direita, estava
encarnada, como quem tivesse recebido uns tapas. Até creio que parecia com
aquelas figuras típicas do Cristo ressuscitado que encontramos nos calendários,
quadros etc.
Eu disse a ele que voltasse
noutro dia, vez que, nesse, eu estava deveras ocupado realizando um inventário.
Eu era o Sr. Sacristão.
Em determinados dias, eu me
transformava em um daqueles acólitos com mania de profeta apocalíptico.
Um verdadeiro cão a ladrar, tal
qual João Batista:
- Endireitai os caminhos porque
o fim está próximo!
As sobras de vinho sempre me
alteravam o humor.
Nos sábados de aleluia acionava
as matracas de madeiras com o maior frenesi:
-Plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac………………………………………………….!
- Malhai o Judas!
Nem mesmo antes da missa o
vinho me fazia bem, por causa do jejum de uma hora para ter direito à comunhão.
No momento da oblação, os sinos
em miniatura, feitos exclusivamente para esses momentos, devido às minhas
chacoalhadas intensas, repicavam e tilintavam anunciando a transformação do pão
e do vinho.
Durante a comunhão, eu ia distribuindo as rodelinhas santificadas,
medindo, com repulsa, o tamanho exacerbado das mãos das beatas e do vestido,
demasiado comprido, das meninas, com entusiasmo.
Mas o dia que mais me
incomodava era o dia de quartas de cinzas, por conta da procissão em que todos
os fiéis dirigiam-se, em fila, a uma cruz com o Cristo de gesso dependurado, que
estava disposta bem em frente ao altar, para beijá-la, e, eu, munido de um lenço
branco, realizava a ingrata missão de livrá-la da espessa e pós-carnavalesca baba
cristã.
À parte isso, eu era o Sr.
Sacristão, embora com 12 anos.
No dia da procissão de Corpus Christi
carregava, ao lado do padre, o turíbulo com o incenso, e, em cada altar
construído nos quatro cantos da cidade, eu entupia os praticantes católicos e
também os curiosos com a fumaça divina, de maneira que ela lhes ficava
impregnada na alma até o próximo ano, ocasião em que renovava a carga com mais
vontade.
Eu tinha a chave das oferendas,
apontava as missas encomendadas, controlava o almoxarifado, inventariava as
hóstias e as garrafas de vinho.
O controle do vinho nunca batia,
até hoje não sei por quê.
Um dos meus maiores defeitos
era o esquecimento, ou como eu preferia a mente que divagava, assim, esqueci
por diversas vezes de abastecer as galhetas com água e vinho, e, na hora da
eucaristia, o padre ficava furibundo, dada a necessidade de me dirigir à
sacristia e realizar o abastecimento às pressas, o qual deveria ter sido feito
no mínimo uma hora antes da missa se iniciar, o que atrasava em muito o ritual.
-Antônio, da próxima vez lhe
penduro um sino na orelha esquerda para não se esquecer das suas atribuições!
-Antônio, tu estás doravante
proibido de pingares a hóstia no vinho!
- Antônio, da próxima vez não
haverá próxima vez, estarás demitido, substituo-te com o tonto do teu irmão e
morrerás de inveja, seu papa hóstias avoado!
-Antônio, da próxima vez, me esqueço
do meu compromisso da confissão, e conto ao teu pai porque andas te demorando
tanto nos banhos!
O fato mais importante na minha
carreira de Sacristão foi no dia da eleição para chefe.
Acabei eleito, com a diferença
de um voto a meu favor.
Eu não pude comparecer, pois
estava convalescente. E, se estivesse presente, sem sombra de dúvida meu voto
não seria pra mim mesmo.
Mas no final, deu tudo certo,
isso sem contar que no fim do meu mandato a equipe reduzia-se à minha pessoa.
Houve deserção em massa.
Mas isso foi um fato isolado.
Permitiu que eu me dedicasse com mais ardor à nobre missão.
O único porém é que até hoje
tenho problemas com vinho, lá em casa. Não que eles me façam mal, isso não, mas
eu nunca sei de fato quantas garrafas havia na despensa. Sempre carrego a
impressão de que deveria ter comprado uma a mais, quem sabe duas.
Mas não tem nada não, vou lá
nos fundos, preparo o turíbulo que confisquei na última semana de exercício no
meu cargo, capricho no incenso e faço boas nuvens de fumaça, com as quais mando
meu sinal para o Cristo, para o verdadeiro Cristo, não aquele pendurado na cruz
de gesso com calos de babas de antanho, mensagem criptografada em que lhe peço que retorne às pressas dado o
número excessivo de descrentes que perderam a noção da fé e vivem aí pelos
cantos a se lamuriar das dificuldades da vida.
Nada pior que isso, eu que já
superei diversos momentos difíceis, como no dia em que o padre me substituiu
não pelo meu irmão, mas por uma coroinha de 14 anos a qual ele apelidou Lolita a despeito do nome correto ser
Adelaide.
Era Lolita pra cá, Lolita pra
lá.
E eu despedido e tendo de me
explicar com meu pai que esfregava nas minhas ventas, possesso, as últimas
contas de água e energia elétrica.
Não chamava Adelaide, o nome de
batismo. Era só Lolita pra cá, Lolita pra lá.
- in nomine patris et filii et spiritus sancti et Lolitaaaa!
- Lolita, diga cá ao padrinho
quantas garrafas de vinho inventariaste?
Não dizia Adelaide, mas sim Lolita, Lolitaaaa!
- Quantas? Apenas isso, tens
certeza, meu anjo? Contaste duas vezes?
- Jesus Maria José! Onde anda
aquela anta do Antônio?