domingo, 1 de julho de 2012

Geladeira

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Eu, certa vez, criei um peixe no bolso. Ele pedia pra sair do bolso e cair nágua.  Mas há que insistir em prendê-lo no bolso. Assim o peixe implora. E nós podemos agarrar na voz. Não é fácil. Ele soletra as águas antes de falar.
Manoel de Barros

Quando criança, eu tinha um amigo alcunhado Geladeira. Geladeira não saía lá de casa. Todavia lá em casa não havia geladeira.  Lá em casa não tinha geladeira, só na da vovó. Na verdade, tínhamos uma geladeira, que ficava no porão da casa da vovó, que tinha energia elétrica e era bem distante. Me falavam vai buscar água gelada na geladeira, mas não esquece de bater a porta. A porta da geladeira do porão da casa da vovó não era confiável. Tinha ocasiões que somente uma cadeira resolvia esse problema. Meu irmão considerava a cadeira mais importante que a geladeira. Ele dizia dá até pra ler revistinha do Tio Patinhas. Ele falava também que ao ler gibis do Tio Patinhas ele acumulava mais conhecimento do que em muitos livros de geografia, por exemplo. Meu irmão queria ser magnata ao crescer. Já o flagrei lendo, sentado na cadeira em frente à geladeira, também, revistinhas do Capitão América e do Super-homem. Mas isso ele não gostava que comentassem. Meu Pai também utilizava a cadeira de frente da geladeira com certa regularidade, para tirar uma soneca. Aliás, era no porão da casa da vovó que Pai sesteava todo dia. Por obrigação, eu e meu irmão também. Mesa velha virava cama, sempre depois do almoço. Mesa velha era o conforto predileto de meu Pai. Meu irmão resmungava só tem ratos aqui. Pai dizia rato sabe o que é bom, quer mordomia de porão fresco. Meu irmão era outro que só queria mordomias. Não era confiável feito a porta da geladeira. Quando era a vez dele buscar água gelada, se esquecia da hora porque ficava jogando bolitas no meio do caminho. Comprovadamente, meu irmão não era de confiança. No jogo de bolitas, ao final da partida, pressentindo a derrota iminente, gritava com estardalhaço quero minha banca de volta, quero minha banca de volta. E, à força, arrancava de volta a bolita que lhe servira de aposta. Meu irmão continuava com essa ideia fixa de ser magnata. E seria sim, anos mais tarde. Profissão, político profissional. Pai não reclamava de meu irmão quando chegava atrasado com a água gelada. Pai gostava mesmo era de água parada em poço, mais fresca. Porão e poço eram as palavras preferidas dele. Por esses motivos, Pai não punha energia elétrica dentro de casa. Certo dia, eu salvei Geladeira de morrer afogado no arroio Dançarino. Foi perto do Natal. Ele comentou ainda bem que me salvou caso contrário eu não ganharia bicicleta do Papai Noel nem tomaria mais coca-cola. Geladeira e eu apenas tínhamos direito a coca-cola em dias de festas. Naquele natal, eu pedi pro Papai Noel energia elétrica e uma geladeira nova. Com a bicicleta, Geladeira nunca mais se banhou no arroio Dançarino. Ia mais longe, num rio maior, mais fundo, que ficava na divisa do município vizinho. Ele dizia estou cansado de ser Geladeira, agora quero ser peixe. Eu não queria ser algo, ser alguém, ser magnata, eu só queria ter geladeira dentro de casa.

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