Eu trancafiado no meu apartamento em
Campo Grande, tentando concluir o meu A Rede,
com o prazo estipulado pelo editor praticamente se esgotando, e meu irmão na
fazenda em Jardim me enviando mensagens via celular me chamando pra pescar, meu
irmão dizendo monta na camioneta e vem pra cá depressa porque a pescaria está
armada, ele insistindo não demora, você sabe como o pai é, e eu em Campo Grande
com o prazo para a entrega de meu livro se esvaindo entre meus dedos, sem que
esses mesmos dedos, tão ágeis no teclado do notebook, consigam solucionar o meu
problema, eu penso o problema não são os dedos, o problema é a mente que já
está um trapo, eu tendo de concluir imediatamente A Rede, e A Rede
praticamente conclusa, faltando apenas o último capítulo, faltando apenas o fecho
de ouro, o arremate final, mas nesse momento decisivo, na hora do clímax eu
perdi o fio da meada, os personagens parecem estar desconexos, nada mais se
encaixa, a trama está desarrumada, sem lógica, e o meu irmão em Jardim,
pressionando com as mensagens, dizendo deixa de lado essa merda de literatura,
isso não dá dinheiro, eu em Campo Grande lendo a mensagem e pressentindo que
agora quem ditara a mensagem fora meu velho pai, eu quase tendo certeza que a
última mensagem via celular tinha sido obra de meu pai, meu irmão já sem
paciência, ou o meu pai como sempre sem paciência ditando mande pro inferno esses
seus livros, isso não tem futuro, um mendigo na esquina da Afonso Pena com a 14
de julho faz pra pinga mais que você publicando esses aí com cunho filosófico,
eu agora com certeza absoluta de que o texto era de meu pai apesar de que o
celular era de meu irmão, mas o linguajar era do velho, como sempre não
querendo ser contrariado nem mesmo pra uma simples pescaria, como sempre
mandando na família toda, ditando os destinos a seu contento, e eu agora não em
Campo Grande, não em Jardim, eu agora em São Paulo das Missões, eu com o meu
mandi chorão cravado no pé, não em Jardim, não em Campo Grande, mas em São
Paulo das Missões, numa tarde chuvosa, em que meu irmão encostou a Brasília
marrom às pressas na frente de casa, meu irmão pegou a enxada e em instantes
voltava com um pote cheio de minhocas, meu irmão gritando pra mim pega logo
essa capa de chuva, não podemos perder a oportunidade, o Dançarino está no
jeito pra pegar um monte de jundiás, o Dançarino subindo por causa das chuvas,
o Dançarino com as águas enlameadas, vermelhas, perfeitas pra pescar jundiá, e
eu em casa, trancado no quarto lendo Os Irmãos Karamazov, eu não pensando em
momento algum em ir pescar naquela chuva e meu irmão gritando lá fora, meu
irmão segurando com ardor o pote lotado de minhocas e as varas de pescar,
dizendo com raiva deixa de lado esses livros, deixa de lado essa preguiça pelo
menos uma vez na vida, eu em São Paulo das Missões, não mais em Campo Grande no
meu apartamento pequeno, não em Jardim na fazenda a perder de vista de meu pai,
em São Paulo das Missões com o mandi chorão mais conhecido por ferrudo grudado
no meu pé que ia gradativamente inchando, eu em São Paulo das Missões atendendo
aos apelos nada simpáticos de meu irmão e embarcando naquela empreitada, eu que
naquele dia não pescara nada que pudesse servir de alimento, apenas um ferrudo
que meu irmão jogou pra trás dizendo puta merda nem pra pescar tu prestas, eu
que cedi às pretensões de meu irmão e ainda assim não pesquei nada, apenas um
mandi chorão conhecido por ferrudo que furou meu pé logo em seguida quando nos
preparávamos para retornar, o mesmo ferrudo que meu irmão jogara fora, a dor
aguda, o pé inchando, e meu irmão dizendo arranca os olhos dele fora e esfrega
a gosma na ferida que logo passa, e eu que sequer conseguia arrancar o ferrão
quanto mais esmagar os olhos do mandi chorão na ferida que latejava, eu agora
em Campo Grande no meu apartamento de escritor solitário, tentando concluir A Rede, não mais em São Paulo das
Missões, mas diante do teclado do meu laptop
sem saber se suprimia a última parte recentemente digitada, ou se incluía
aquela citação separada desde o início para o fecho do livro, a citação
separada desde o início para o fecho de todos os meus livros, mas a citação da
qual eu sempre tivera medo de colocar nos livros escritos por mim dado à maneira
implacável como os herdeiros do autor da citação pretendida conduziam a
utilização da obra do meu escritor predileto, medo porque as indenizações exigidas
implacavelmente pelos herdeiros muitas
vezes ultrapassavam o valor da venda total dos meus livros, eu que sempre
atingia um sucesso relativo, eu que tinha leitores assíduos, eu que tinha
mercado, como se diz, ainda assim eu relutava em sacrificar um eventual lucro
nas vendas em favor dos herdeiros do meu autor favorito em troca de uma mísera
citação de no máximo uma linha, eu agora de olho no celular que por alguns
momentos deixara de trazer as mensagens de meu irmão e de meu pai, o celular
que não mais vibrava doidivanas a cuspir os vitupérios de meu velho pai e de
meu irmão impacientes, eu agora sem saber o que fazer com os meus personagens
justo agora na parte final do livro, eu que sabia de antemão que em breve meu
celular tocaria e as cobranças do meu editor seriam bem mais ácidas do que as
cobranças de meu pai que exigia a minha presença na fazenda imediatamente para
uma simples pescaria, e o meu celular repentinamente quieto, eu não mais em São
Paulo das Missões, no barranco do Dançarino tremendo de febre por causa do
ferrudo grudado no meu pé, eu não mais no meu apartamento apertado em Campo
Grande, eu na camioneta, na autoestrada rumando para Jardim, e meu celular
repentinamente mudo, terrivelmente quieto, eu que já temia a fúria
incontrolável de meu pai, eu que dependia da ajuda financeira mensal do velho
para bancar a minha vida na capital, eu que odiava a fazenda, odiava o campo,
odiava pescarias, odiava o editor, odiava os herdeiros do meu autor preferido,
sim a citação definitivamente ficará de fora pois eu não toparia sacrificar meu
pequeno lucro em favor dos herdeiros do autor citado, não, nada de minha parte
para os herdeiros sanguessugas, pior que isso só a chatice carola de meu pai
e o ferrudo chorão grudado no meu pé inchado.
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