domingo, 16 de setembro de 2012

Sr. Sacristão



Até hoje, a maior honraria da minha vida foi ser chefe dos sacristãos, na igreja católica da minha cidade natal, São Paulo das Missões.

Nunca exerci tamanha responsabilidade.

Nunca me senti tão importante como naqueles dias.

Nunca exerci cargo com tamanha desenvoltura e dedicação.
No princípio, era Deus no céu e Antônio na Sacristia.
- In nomine patris et filii et spiritus sancti et Antônioooo!

A irmã Irene, coordenadora da equipe dos coroinhas da paróquia, depositava na minha pessoa a maior confiança do mundo católico.

-Antônio, sob este teu lombo largo de anta carregarei essa sacristia toda.

-Antônio, tu bem sabes, quanto melhor a mula de carga, mais carga para ela. Não vai me decepcionar!

Às vezes eu me atrasava:

- Antônio, enxuga esse suor, que vai borrar sua camisa branca!

- Antônio, sua camisa branca não está engomada!

-Antônio, sua camisa branca está com dois vincos!

-Antônio, sua camisa branca está amarela!

-Antônio, tu estás amarelo, o que andas a fazer nas horas de folga?

Na minha visão, nem o Padre detinha tamanha responsabilidade perante a comunidade.

Certo dia, na porta da sacristia, deteve-me certo cidadão de cabelos longos e que se expressava num dialeto estranho, do tipo aramaico, cuja face esquerda, e também a direita, estava encarnada, como quem tivesse recebido uns tapas. Até creio que parecia com aquelas figuras típicas do Cristo ressuscitado que encontramos nos calendários, quadros etc.

Eu disse a ele que voltasse noutro dia, vez que, nesse, eu estava deveras ocupado realizando um inventário.

Eu era o Sr. Sacristão.

Em determinados dias, eu me transformava em um daqueles acólitos com mania de profeta apocalíptico.

Um verdadeiro cão a ladrar, tal qual João Batista:

- Endireitai os caminhos porque o fim está próximo!

As sobras de vinho sempre me alteravam o humor.

Nos sábados de aleluia acionava as matracas de madeiras com o maior frenesi:

-Plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac-plac-palac………………………………………………….!

- Malhai o Judas!

Nem mesmo antes da missa o vinho me fazia bem, por causa do jejum de uma hora para ter direito à comunhão.

No momento da oblação, os sinos em miniatura, feitos exclusivamente para esses momentos, devido às minhas chacoalhadas intensas, repicavam e tilintavam anunciando a transformação do pão e do vinho.

Durante a comunhão, eu ia distribuindo as rodelinhas santificadas, medindo, com repulsa, o tamanho exacerbado das mãos das beatas e do vestido, demasiado comprido, das meninas, com entusiasmo.

Mas o dia que mais me incomodava era o dia de quartas de cinzas, por conta da procissão em que todos os fiéis dirigiam-se, em fila, a uma cruz com o Cristo de gesso dependurado, que estava disposta bem em frente ao altar, para beijá-la, e, eu, munido de um lenço branco, realizava a ingrata missão de livrá-la da espessa e pós-carnavalesca baba cristã.

À parte isso, eu era o Sr. Sacristão, embora com 12 anos.

No dia da procissão de Corpus Christi carregava, ao lado do padre, o turíbulo com o incenso, e, em cada altar construído nos quatro cantos da cidade, eu entupia os praticantes católicos e também os curiosos com a fumaça divina, de maneira que ela lhes ficava impregnada na alma até o próximo ano, ocasião em que renovava a carga com mais vontade.

Eu tinha a chave das oferendas, apontava as missas encomendadas, controlava o almoxarifado, inventariava as hóstias e as garrafas de vinho.

O controle do vinho nunca batia, até hoje não sei por quê.

Um dos meus maiores defeitos era o esquecimento, ou como eu preferia a mente que divagava, assim, esqueci por diversas vezes de abastecer as galhetas com água e vinho, e, na hora da eucaristia, o padre ficava furibundo, dada a necessidade de me dirigir à sacristia e realizar o abastecimento às pressas, o qual deveria ter sido feito no mínimo uma hora antes da missa se iniciar, o que atrasava em muito o ritual.

-Antônio, da próxima vez lhe penduro um sino na orelha esquerda para não se esquecer das suas atribuições!

-Antônio, tu estás doravante proibido de pingares a hóstia no vinho!

- Antônio, da próxima vez não haverá próxima vez, estarás demitido, substituo-te com o tonto do teu irmão e morrerás de inveja, seu papa hóstias avoado!

-Antônio, da próxima vez, me esqueço do meu compromisso da confissão, e conto ao teu pai porque andas te demorando tanto nos banhos!

O fato mais importante na minha carreira de Sacristão foi no dia da eleição para chefe.

Acabei eleito, com a diferença de um voto a meu favor.

Eu não pude comparecer, pois estava convalescente. E, se estivesse presente, sem sombra de dúvida meu voto não seria pra mim mesmo.

Mas no final, deu tudo certo, isso sem contar que no fim do meu mandato a equipe reduzia-se à minha pessoa.

Houve deserção em massa.

Mas isso foi um fato isolado. Permitiu que eu me dedicasse com mais ardor à nobre missão.

O único porém é que até hoje tenho problemas com vinho, lá em casa. Não que eles me façam mal, isso não, mas eu nunca sei de fato quantas garrafas havia na despensa. Sempre carrego a impressão de que deveria ter comprado uma a mais, quem sabe duas.

Mas não tem nada não, vou lá nos fundos, preparo o turíbulo que confisquei na última semana de exercício no meu cargo, capricho no incenso e faço boas nuvens de fumaça, com as quais mando meu sinal para o Cristo, para o verdadeiro Cristo, não aquele pendurado na cruz de gesso com calos de babas de antanho, mensagem criptografada em que lhe peço que retorne às pressas dado o número excessivo de descrentes que perderam a noção da fé e vivem aí pelos cantos a se lamuriar das dificuldades da vida.

Nada pior que isso, eu que já superei diversos momentos difíceis, como no dia em que o padre me substituiu não pelo meu irmão, mas por uma coroinha de 14 anos a qual ele apelidou Lolita a despeito do nome correto ser Adelaide.

Era Lolita pra cá, Lolita pra lá.

E eu despedido e tendo de me explicar com meu pai que esfregava nas minhas ventas, possesso, as últimas contas de água e energia elétrica.

Não chamava Adelaide, o nome de batismo. Era só Lolita pra cá, Lolita pra lá.
- in nomine patris et filii et spiritus sancti et Lolitaaaa!

- Lolita, diga cá ao padrinho quantas garrafas de vinho inventariaste?

Não dizia Adelaide, mas sim Lolita, Lolitaaaa!

- Quantas? Apenas isso, tens certeza, meu anjo? Contaste duas vezes?

- Jesus Maria José! Onde anda aquela anta do Antônio?

 

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