Um pequeno labirinto a enfrentar antes da tão almejada
oportunidade. João Silva sentiu o ar enchendo seus pulmões. Respiração,
atividade quase imperceptível no cotidiano. Respirar, agora, não era apenas um
mero exercício que independia de sua vontade. Respirar para apaziguar o ânimo e
renovar as energias. Aspirava a muito mais que oxigênio. Aspirar e expirar antes
de adentrar no espelhado prédio repleto de automóveis expostos como se fossem
mercadorias frugais de uma mercearia de subúrbio. São tantos, pensou, e quão
reluzentes. Essa cera deve ser importada também. Mas não eram simplesmente
mercadorias adornadas com o velho selo fetichista do consumo; eram muito mais
que meros objetos fungíveis e consumíveis; eram o hedonismo em forma de carros;
eram o hedonismo forte como o aço. Entrou pela lateral, como convêm aos
empregados, numa porta estreita. Seguiu as recomendações da recepcionista,
andou em frente, dobrou à direita, seguiu mais uns quarenta metros, dobrou
novamente à direita, e bateu na porta em que se lia, em letras doiradas,
Departamento de Recursos Humanos. O corredor que o levou até a sala pretendida
era amplo, embora estreito, quase na penumbra, com várias bifurcações, opções
de seguir em frente, dobrar à direita ou à esquerda, em suma, uma das tantas
galerias de um labirinto. Lembrou-se da Pequena Fábula de Kafka, texto que
encontrara casualmente na internet e lera na sala de aula, no dia destinado a
leituras internacionais. Ensino médio em escola pública era isso, o aluno mesmo
fazia a aula. Todo mundo entrava com sua parte de visão crítica do mundo. Os
professores eram os mestres na retransmissão da velha ideologia que os antigos
lhes haviam ensinado e também do proselitismo. Dar aula, passar a matéria era o
que menos importava. Kafka? Quem era
Franz Kafka?, inquirira o professor de literatura. Fábula não teria sido melhor
arrumar uma de La Fontaine? O Lobo e Cordeiro não seria uma fábula verdadeira e
mais elucidativa? O homem lobo do homem estava tão em voga ultimamente,
dissera. Não precisamos de pequenas fábulas. Precisamos da grandiloquência, do
inaudito, mas precisamos de algo transmissível, compreensível, legível, esse
Franz me cheira a Neoliberal... Ai de mim, João Silva relembrou a introdução
Kafkiana, o mundo a cada dia fica mais estreito...
O currículo
estava perfeito, segundo sua ótica, mas obter a agraciada vaga de vendedor de
uma revendedora de carros alemães importados não seria nada fácil. E realmente
não foi fácil. Ensino médio, nenhuma experiência anterior, sem referências ou
carta de recomendação, nenhum curso técnico. Universidade? Não, ainda não,
contava com o emprego para poder pagá-la ou quem sabe conseguir um
financiamento estudantil em breve. As cotas raciais também seriam um alento
para quem frequentara toda a vida de estudante o claudicante ensino público.
Trabalhava pouco mais de 4 anos, desde os 14, na cooperativa de reciclagem
organizada pelo pai. Entendo muito de papelão, plásticos em geral, latinha e
sucatas, mas percebo que isso não faz a menor diferença e também não é vantagem
diante de milhares de candidatos bem preparados. Porém, tenho muita
determinação, sei trabalhar em equipe, boa comunicação, sei administrar o tempo
de maneira a render no serviço, preciso apenas dessa chance para mostrar meu
valor...
A vaga já
foi preenchida, sinto lhe comunicar. Entretanto, arrisco um conselho, rapaz, e
de graça, não vou mandar a fatura por isso, aqui é a ignóbil selva dos negócios
e do mercado de trabalho. Nesse cenário, competição é a palavra chave. E para
competir é preciso estar preparado. É necessário estar no mesmo patamar dos
concorrentes e não vai adiantar apelar para as cotas raciais simplesmente
porque, aqui, elas não têm vez. Aqui, elas não existem, somente no mundo
surrealista do ensino superior público. Aqui, elas soam como um palavrão... E
nossos clientes possuem ouvidos sensíveis e principalmente seletivos. Só ouvem
o que lhes aprouver...
Os dedos não
estavam mais obedecendo. Ele estava estranho. Talvez fosse a falta de café. Ou
talvez estivesse com vontade de apenas ler ou folhear o jornal diário que
sempre trazia consigo, embora geralmente não lesse nenhuma vírgula. Ou as
pernas torneadas da loira logo ali, sentada à sua frente. Começara a escrever
fazia nem 5 minutos. Tinha pressa em concluir o conto que daria título ao
livro. No Departamento de Recursos Humanos de uma Sociedade Limitada. Olhou
para o atendente que enfim se aproximava com a xícara fumegante. O aroma de
café fresco reanimou seu espírito. Ele empurrou o netbook mais para o lado da
apertada mesa da lanchonete. Quanta ousadia tentar escrever sem antes sorver o
tradicional café. Sempre aquela rotina, nos dias da semana, exceto feriados, em
torno das 11h30min ele abandonava o apartamento, atravessava a avenida,
dirigia-se à lanchonete, tomava um café, depois redigia um conto ali mesmo,
sentado na mesa, com o entra e sai de clientes, alguns já conhecidos de vista,
apenas de vista, sem trocas de ideias, apesar das tantas vezes que se esbarravam
no local, ali mesmo, sem se importar com a azáfama dos esfaimados e sequiosos à
sua volta e dos gritos de pedidos dos garçons, com o tilintar de pratos e
talheres, televisão ligada no noticiário esportivo, com os gritinhos exultantes
dos colegiais a lanchar após as aulas matinais, com tudo isso e ali mesmo ele
digitava seu conto diário. Mas em casa, revisava tudo, muitas vezes reformava
todo o enredo, mudava os personagens, retificava o estilo, não se importava em
fazer cortes, pelo bem da narrativa e do sucesso dos seus livros. Esse era o
seu jeito de fazer literatura e essa era a fórmula que lhe permitia sobreviver
com os livros. Os ganhos anuais eram modestos, ainda assim melhor que os demais
ofícios. Jornalismo, a sua formação. Mas nunca a exercera. Profissão de risco,
ultimamente. Se a informação era repassada com imparcialidade e sem demais
interesses, rendia demissões ou processos. Esse era seu ponto de vista. A
ficção, por outro lado, não dava muitas preocupações, nem muito dinheiro, ao
menos para ele, escritor do portfólio de uma editora mediana, mas ainda assim
era compensador, apesar dos parcos leitores assíduos de suas obras. Costumava
pensar no produto da sua labuta diária como arte e não como comércio. Por isso
caprichava nos motes e na elaboração dos textos e também não costumava se
assustar com o cheque mensal magro que o editor costumava lhe repassar.
Não era a
falta de café que o incomodava. Incomodar não era a palavra apropriada. Eram as
pernas torneadas da loira, logo ali, diante de seus olhos, que o faziam
desinteressado pela narrativa. Nunca a
vira por lá. Nunca. Essas pernas não foram torneadas em academias de malhação,
eram diferentes, como se torneadas naturalmente. Podia ver os loiros pêlos
ralos das pernas. O cabelo dourado estava preso por uma única trança à moda
medieval. O rosto era largo, mas delicado, com o nariz afinado e os olhos
castanhos. Deveria ter de 30, 33, 35 ou quem sabe até 40 anos. Era difícil
mensurar. Essas eram as idades perfeitas para as mulheres, conforme suas
intuições. De 30 a 40 anos a mulher era mais mulher, mais belas, mais experiente,
sensuais, argutas e sábias, nessa faixa de idade. Nesses anos, as mulheres
realmente sabiam o que fazer de um homem nos momentos mais íntimos. Sabiam como
conduzir uma relação sexual, mesmo aquelas ocorridas casualmente. Sabiam o momento exato do beijo, dos toques,
do êxtase, da explosão. A libido estaria no ápice. E isso mexia com ele, o auge
da libido, a libido das mulheres nesse ínterim temporal.
Ele abriu as
páginas do jornal. Deu uma rápida olhada. Pouco lhe chamava atenção . Olhou
mais detidamente um anúncio, mas desistiu em segundos. Digitou mais algumas
linhas. O conto de hoje precisaria ser mais apurado, afinal seria o chamariz
para seu livro. Releu a introdução. Gostou da citação de Kafka. Simpatizou com
o título. Havia algum tempo pensara em escrever algo nesse sentido. No
departamento de recursos humanos de uma sociedade limitada mais um promissor
jovem negro era recusado. Fora recusado não pelas suas pobres qualificações
profissionais, mas pela cor da pele. Sabiam que ele era um rapaz com potencial
suficiente para rapidamente aprender todos os ardis da arte de vender, mesmo assim
não o aceitaram na restrita confraria dos jovens bem empregados profissionalmente.
Vender carros importados alemães implicaria em gordas e generosas comissões.
Significaria bom salário capaz, inclusive, de permitir que o elemento
adquirisse, embora financiado, um automóvel alemão importado. E isso não seria bom, romperia com o
protocolo estabelecido. Não era isso que se ditava na academia dos empresários
e dos executivos de sucesso.
Ela pediu
uma salada, algumas folhas picotadas de alface americana, traços de rúcula,
finas rodelas de tomate e pepino, um pouco de cenoura ralada e por enfeite um
ramo de salsa. Temperou com azeite e limão. Tinha estatura mediana, calculara,
talvez 1, 65 a 1,70 metros de altura e vistosas pernas grossas. Vestia uma
bermuda branca, não muito curta nem longa, meio termo, e uma blusa creme
comportada. Seios eram pequenos, bem protegidos pela blusa. Usava óculos
escuros, os quais tratou de tirar assim que entrou no recinto. Também portava
um smartphone. Ele pediu mais um
café. Adoçou com açúcar mascavo. As pernas definitivamente eram grossas e
torneadas e as penugens alvas, quase imperceptíveis. Pensou em se aproximar e
pedir licença para sentar. Puxaria um assunto bem humorado, faria alguns
gracejos acerca de amenidades do dia a dia das grandes cidades, falaria sobre
os últimos acontecimentos do mundo das celebridades, da música, do cinema, da
literatura, da moda, da juventude. Ela tinha a sua idade, com certeza ela
estaria na faixa dos 30 a 40 anos. Ele dificilmente acertava a idade exata das
pessoas, mas comumente acertava dentro de um leque mais aberto de opções. O
café não estava tão bom quanto o primeiro. Repensou, não faria gracejos. Não
falaria sobre moda nem sobre quaisquer outros assuntos possíveis. Nem
convidaria para um happy hour na
choperia da esquina. Nem se aproximaria. Não estava acostumado com esse tipo de
mulher. Outras mulheres lhe davam atenção. Essa, mesmo que praticamente à sua
frente, mesmo sem os frondosos óculos escuros, não o notava.
Ele anotou
um verso, para não perdê-lo. Não era poeta, mas como o conto não estava
rendendo, não custaria nada anotar alguns versos sobre a situação vivida nesse
dia. Ei-la, a diva devassa/ Vem leve,
solta, lassa.
João Silva, estudante, jovem, promissor,
buscando seu lugar no mercado de trabalho e ele, Pedro Kloch, escritor jovem e promissor,
buscando seu espaço no mundo amoroso. Qual deles obteria mais sucesso? Nem um
nem outro? Quem estava mais enredado com uma situação intransponível. Qual
linha mais tênue e mais difícil de romper? A alvura da pele das pernas grossas
e dos cabelos trançados estaria disponível?
Tocou o
smartphone da loira. Ela atendeu discretamente. Fez algumas anotações em um
guardanapo. Parecia ser algum endereço. Ele ouviu o número e o bairro. O nome
da rua soou estranho, embora tenha ouvido perfeitamente.
O poema
ficou pronto nos instantes seguintes. Estava com pressa. A mulher loira de
pernas grossas que lhe enfeitiçara pediu a conta e ameaçou sair em seguida. O
poema não era dos melhores. Todavia não era de se jogar fora e não se
desperdiça tostões muito menos poemas. Algum dia poderia encaixá-lo em algum
conto vindouro. Pensou em usá-lo num enredo em que algum rapaz se apaixonasse
por uma prostituta, após uma noite de sexo pago. Fizera-o motivado pela presença
feminina da loira, mas os termos não se adequavam necessariamente a ela. Não
era para ela, o poema. Até porque não a conhecia, não sabia das suas reais
qualidades e defeitos. Ei-la, a diva
devassa/ Vem leve, solta e lassa/ Tem a áurea tosca/ Loura flor em botão/ Antes
de você minha vida era insossa/ Néscia, sua sutileza me comove/ Despencam as
estrelas pra te galantear/ Tem o dom de me fazer flutuar/ Desprendem-se de mim
gotículas de suor/ E eu, nas nuvens/ Nas nuvens em forma de cavalinhos de
carrossel / Eu prossigo, contigo, nesse trotear incasto.
João Silva
perdeu a tão sonhada oportunidade. Entretanto, sabia, o preço para alcançar seu
almejado emprego ainda seria depositado e ele então alcançaria o objetivo. Nada
vem de graça. Antes de procurar emprego formal de vendedor de automóveis
importados, ganhava a vida reciclando sucatas e tantos outros objetos
desprezados pela maioria das pessoas. Agora queria ser diferente. Emprego com
carteira assinada, fundo de garantia, salário fixo mais comissões, além de
benefícios, plano de saúde entre outros. Não queria mais saber de sucatas,
pouco se lhe dava a reciclagem. Cooperativas não davam lucro. O socialismo não
estava com nada. Repartir quando se tem tão pouco é loucura, falta de bom
senso, falta de razão. Queria vender. Vender carros importados para os bacanas
endinheirados. O dinheiro é o que importava, é quem ditava o ritmo alucinante,
uma vida sem dinheiro, sem consumo, era uma vida sem oportunidades, como a sua.
O que faziam os homens senão produzir, produzir, produzir, vender, vender,
vender...Outros compram, compram, compram...Há os que preferem mais comprar a
vender; esses, normalmente pensam, acertadamente, que tudo tem um preço, mesmo
que às vezes seja um preço imensurável, um preço moral.
Pedro Kloch
deixou passar a chance. Perdeu a loira de pernas grossas de vista. Ela saiu do
mesmo jeito que entrou, rapidamente. O smartphone havia tocado mais uma vez.
Alguém do outro lado da linha estava com pressa. Ela fez um muxoxo, ajeitou a
roupa, pagou a conta e partiu apressadamente.
Ele olhou o
relógio. Eram horas. Salvou os textos digitados e fechou o netbook. Dobrou o
jornal e jogou na lixeira ao lado da mesa da loira. Eram horas. O conto seria
retrabalhado em casa, no seu escritório, sem as tentações desse dia. O poema
provavelmente ficaria esquecido nos seus arquivos e nunca mais veria a luz da
tela do seu computador, muito menos seria impresso.
Demorou, disse uma pragmática voz masculina.
Demorei nada, precisava me produzir, respondeu uma lasciva voz feminina, não
poderia aparecer aqui assim com aquela roupa comportada. Eu estava em busca da
mulher perfeita, novamente a voz de homem. Acho que achei. Amei o seu corpo,
principalmente suas pernas torneadas e sua bermuda branca contribuiu muito para
isso, realçou o que já era perfeito, atiçou meus fetiches. Mas agora fique sem
roupa, quero ver outras penugens...Amor, não compreenda mal, meu bem, disse a
loira quase sussurrando, mas primeiro o pagamento. - Trezentos Reais.
Ei-la, a diva devassa, vem leve, solta, lassa...
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