domingo, 27 de maio de 2012

No departamento de recursos humanos de uma sociedade limitada


           Um pequeno labirinto a enfrentar antes da tão almejada oportunidade. João Silva sentiu o ar enchendo seus pulmões. Respiração, atividade quase imperceptível no cotidiano. Respirar, agora, não era apenas um mero exercício que independia de sua vontade. Respirar para apaziguar o ânimo e renovar as energias. Aspirava a muito mais que oxigênio. Aspirar e expirar antes de adentrar no espelhado prédio repleto de automóveis expostos como se fossem mercadorias frugais de uma mercearia de subúrbio. São tantos, pensou, e quão reluzentes. Essa cera deve ser importada também. Mas não eram simplesmente mercadorias adornadas com o velho selo fetichista do consumo; eram muito mais que meros objetos fungíveis e consumíveis; eram o hedonismo em forma de carros; eram o hedonismo forte como o aço. Entrou pela lateral, como convêm aos empregados, numa porta estreita. Seguiu as recomendações da recepcionista, andou em frente, dobrou à direita, seguiu mais uns quarenta metros, dobrou novamente à direita, e bateu na porta em que se lia, em letras doiradas, Departamento de Recursos Humanos. O corredor que o levou até a sala pretendida era amplo, embora estreito, quase na penumbra, com várias bifurcações, opções de seguir em frente, dobrar à direita ou à esquerda, em suma, uma das tantas galerias de um labirinto. Lembrou-se da Pequena Fábula de Kafka, texto que encontrara casualmente na internet e lera na sala de aula, no dia destinado a leituras internacionais. Ensino médio em escola pública era isso, o aluno mesmo fazia a aula. Todo mundo entrava com sua parte de visão crítica do mundo. Os professores eram os mestres na retransmissão da velha ideologia que os antigos lhes haviam ensinado e também do proselitismo. Dar aula, passar a matéria era o que menos importava.  Kafka? Quem era Franz Kafka?, inquirira o professor de literatura. Fábula não teria sido melhor arrumar uma de La Fontaine? O Lobo e Cordeiro não seria uma fábula verdadeira e mais elucidativa? O homem lobo do homem estava tão em voga ultimamente, dissera. Não precisamos de pequenas fábulas. Precisamos da grandiloquência, do inaudito, mas precisamos de algo transmissível, compreensível, legível, esse Franz me cheira a Neoliberal... Ai de mim, João Silva relembrou a introdução Kafkiana, o mundo a cada dia fica mais estreito...
            O currículo estava perfeito, segundo sua ótica, mas obter a agraciada vaga de vendedor de uma revendedora de carros alemães importados não seria nada fácil. E realmente não foi fácil. Ensino médio, nenhuma experiência anterior, sem referências ou carta de recomendação, nenhum curso técnico. Universidade? Não, ainda não, contava com o emprego para poder pagá-la ou quem sabe conseguir um financiamento estudantil em breve. As cotas raciais também seriam um alento para quem frequentara toda a vida de estudante o claudicante ensino público. Trabalhava pouco mais de 4 anos, desde os 14, na cooperativa de reciclagem organizada pelo pai. Entendo muito de papelão, plásticos em geral, latinha e sucatas, mas percebo que isso não faz a menor diferença e também não é vantagem diante de milhares de candidatos bem preparados. Porém, tenho muita determinação, sei trabalhar em equipe, boa comunicação, sei administrar o tempo de maneira a render no serviço, preciso apenas dessa chance para mostrar meu valor...
            A vaga já foi preenchida, sinto lhe comunicar. Entretanto, arrisco um conselho, rapaz, e de graça, não vou mandar a fatura por isso, aqui é a ignóbil selva dos negócios e do mercado de trabalho. Nesse cenário, competição é a palavra chave. E para competir é preciso estar preparado. É necessário estar no mesmo patamar dos concorrentes e não vai adiantar apelar para as cotas raciais simplesmente porque, aqui, elas não têm vez. Aqui, elas não existem, somente no mundo surrealista do ensino superior público. Aqui, elas soam como um palavrão... E nossos clientes possuem ouvidos sensíveis e principalmente seletivos. Só ouvem o que lhes aprouver...
            Os dedos não estavam mais obedecendo. Ele estava estranho. Talvez fosse a falta de café. Ou talvez estivesse com vontade de apenas ler ou folhear o jornal diário que sempre trazia consigo, embora geralmente não lesse nenhuma vírgula. Ou as pernas torneadas da loira logo ali, sentada à sua frente. Começara a escrever fazia nem 5 minutos. Tinha pressa em concluir o conto que daria título ao livro. No Departamento de Recursos Humanos de uma Sociedade Limitada. Olhou para o atendente que enfim se aproximava com a xícara fumegante. O aroma de café fresco reanimou seu espírito. Ele empurrou o netbook mais para o lado da apertada mesa da lanchonete. Quanta ousadia tentar escrever sem antes sorver o tradicional café. Sempre aquela rotina, nos dias da semana, exceto feriados, em torno das 11h30min ele abandonava o apartamento, atravessava a avenida, dirigia-se à lanchonete, tomava um café, depois redigia um conto ali mesmo, sentado na mesa, com o entra e sai de clientes, alguns já conhecidos de vista, apenas de vista, sem trocas de ideias, apesar das tantas vezes que se esbarravam no local, ali mesmo, sem se importar com a azáfama dos esfaimados e sequiosos à sua volta e dos gritos de pedidos dos garçons, com o tilintar de pratos e talheres, televisão ligada no noticiário esportivo, com os gritinhos exultantes dos colegiais a lanchar após as aulas matinais, com tudo isso e ali mesmo ele digitava seu conto diário. Mas em casa, revisava tudo, muitas vezes reformava todo o enredo, mudava os personagens, retificava o estilo, não se importava em fazer cortes, pelo bem da narrativa e do sucesso dos seus livros. Esse era o seu jeito de fazer literatura e essa era a fórmula que lhe permitia sobreviver com os livros. Os ganhos anuais eram modestos, ainda assim melhor que os demais ofícios. Jornalismo, a sua formação. Mas nunca a exercera. Profissão de risco, ultimamente. Se a informação era repassada com imparcialidade e sem demais interesses, rendia demissões ou processos. Esse era seu ponto de vista. A ficção, por outro lado, não dava muitas preocupações, nem muito dinheiro, ao menos para ele, escritor do portfólio de uma editora mediana, mas ainda assim era compensador, apesar dos parcos leitores assíduos de suas obras. Costumava pensar no produto da sua labuta diária como arte e não como comércio. Por isso caprichava nos motes e na elaboração dos textos e também não costumava se assustar com o cheque mensal magro que o editor costumava lhe repassar. 
            Não era a falta de café que o incomodava. Incomodar não era a palavra apropriada. Eram as pernas torneadas da loira, logo ali, diante de seus olhos, que o faziam desinteressado pela narrativa.  Nunca a vira por lá. Nunca. Essas pernas não foram torneadas em academias de malhação, eram diferentes, como se torneadas naturalmente. Podia ver os loiros pêlos ralos das pernas. O cabelo dourado estava preso por uma única trança à moda medieval. O rosto era largo, mas delicado, com o nariz afinado e os olhos castanhos. Deveria ter de 30, 33, 35 ou quem sabe até 40 anos. Era difícil mensurar. Essas eram as idades perfeitas para as mulheres, conforme suas intuições. De 30 a 40 anos a mulher era mais mulher, mais belas, mais experiente, sensuais, argutas e sábias, nessa faixa de idade. Nesses anos, as mulheres realmente sabiam o que fazer de um homem nos momentos mais íntimos. Sabiam como conduzir uma relação sexual, mesmo aquelas ocorridas casualmente.  Sabiam o momento exato do beijo, dos toques, do êxtase, da explosão. A libido estaria no ápice. E isso mexia com ele, o auge da libido, a libido das mulheres nesse ínterim temporal.
            Ele abriu as páginas do jornal. Deu uma rápida olhada. Pouco lhe chamava atenção . Olhou mais detidamente um anúncio, mas desistiu em segundos. Digitou mais algumas linhas. O conto de hoje precisaria ser mais apurado, afinal seria o chamariz para seu livro. Releu a introdução. Gostou da citação de Kafka. Simpatizou com o título. Havia algum tempo pensara em escrever algo nesse sentido. No departamento de recursos humanos de uma sociedade limitada mais um promissor jovem negro era recusado. Fora recusado não pelas suas pobres qualificações profissionais, mas pela cor da pele. Sabiam que ele era um rapaz com potencial suficiente para rapidamente aprender todos os ardis da arte de vender, mesmo assim não o aceitaram na restrita confraria dos jovens bem empregados profissionalmente. Vender carros importados alemães implicaria em gordas e generosas comissões. Significaria bom salário capaz, inclusive, de permitir que o elemento adquirisse, embora financiado, um automóvel alemão importado.  E isso não seria bom, romperia com o protocolo estabelecido. Não era isso que se ditava na academia dos empresários e dos executivos de sucesso.
            Ela pediu uma salada, algumas folhas picotadas de alface americana, traços de rúcula, finas rodelas de tomate e pepino, um pouco de cenoura ralada e por enfeite um ramo de salsa. Temperou com azeite e limão. Tinha estatura mediana, calculara, talvez 1, 65 a 1,70 metros de altura e vistosas pernas grossas. Vestia uma bermuda branca, não muito curta nem longa, meio termo, e uma blusa creme comportada. Seios eram pequenos, bem protegidos pela blusa. Usava óculos escuros, os quais tratou de tirar assim que entrou no recinto. Também portava um smartphone. Ele pediu mais um café. Adoçou com açúcar mascavo. As pernas definitivamente eram grossas e torneadas e as penugens alvas, quase imperceptíveis. Pensou em se aproximar e pedir licença para sentar. Puxaria um assunto bem humorado, faria alguns gracejos acerca de amenidades do dia a dia das grandes cidades, falaria sobre os últimos acontecimentos do mundo das celebridades, da música, do cinema, da literatura, da moda, da juventude. Ela tinha a sua idade, com certeza ela estaria na faixa dos 30 a 40 anos. Ele dificilmente acertava a idade exata das pessoas, mas comumente acertava dentro de um leque mais aberto de opções. O café não estava tão bom quanto o primeiro. Repensou, não faria gracejos. Não falaria sobre moda nem sobre quaisquer outros assuntos possíveis. Nem convidaria para um happy hour na choperia da esquina. Nem se aproximaria. Não estava acostumado com esse tipo de mulher. Outras mulheres lhe davam atenção. Essa, mesmo que praticamente à sua frente, mesmo sem os frondosos óculos escuros, não o notava.
            Ele anotou um verso, para não perdê-lo. Não era poeta, mas como o conto não estava rendendo, não custaria nada anotar alguns versos sobre a situação vivida nesse dia. Ei-la, a diva devassa/ Vem leve, solta, lassa.  
            João Silva, estudante, jovem, promissor, buscando seu lugar no mercado de trabalho e ele, Pedro Kloch, escritor jovem e promissor, buscando seu espaço no mundo amoroso. Qual deles obteria mais sucesso? Nem um nem outro? Quem estava mais enredado com uma situação intransponível. Qual linha mais tênue e mais difícil de romper? A alvura da pele das pernas grossas e dos cabelos trançados estaria disponível?
            Tocou o smartphone da loira. Ela atendeu discretamente. Fez algumas anotações em um guardanapo. Parecia ser algum endereço. Ele ouviu o número e o bairro. O nome da rua soou estranho, embora tenha ouvido perfeitamente.
            O poema ficou pronto nos instantes seguintes. Estava com pressa. A mulher loira de pernas grossas que lhe enfeitiçara pediu a conta e ameaçou sair em seguida. O poema não era dos melhores. Todavia não era de se jogar fora e não se desperdiça tostões muito menos poemas. Algum dia poderia encaixá-lo em algum conto vindouro. Pensou em usá-lo num enredo em que algum rapaz se apaixonasse por uma prostituta, após uma noite de sexo pago. Fizera-o motivado pela presença feminina da loira, mas os termos não se adequavam necessariamente a ela. Não era para ela, o poema. Até porque não a conhecia, não sabia das suas reais qualidades e defeitos. Ei-la, a diva devassa/ Vem leve, solta e lassa/ Tem a áurea tosca/ Loura flor em botão/ Antes de você minha vida era insossa/ Néscia, sua sutileza me comove/ Despencam as estrelas pra te galantear/ Tem o dom de me fazer flutuar/ Desprendem-se de mim gotículas de suor/ E eu, nas nuvens/ Nas nuvens em forma de cavalinhos de carrossel / Eu prossigo, contigo, nesse trotear incasto.
            João Silva perdeu a tão sonhada oportunidade. Entretanto, sabia, o preço para alcançar seu almejado emprego ainda seria depositado e ele então alcançaria o objetivo. Nada vem de graça. Antes de procurar emprego formal de vendedor de automóveis importados, ganhava a vida reciclando sucatas e tantos outros objetos desprezados pela maioria das pessoas. Agora queria ser diferente. Emprego com carteira assinada, fundo de garantia, salário fixo mais comissões, além de benefícios, plano de saúde entre outros. Não queria mais saber de sucatas, pouco se lhe dava a reciclagem. Cooperativas não davam lucro. O socialismo não estava com nada. Repartir quando se tem tão pouco é loucura, falta de bom senso, falta de razão. Queria vender. Vender carros importados para os bacanas endinheirados. O dinheiro é o que importava, é quem ditava o ritmo alucinante, uma vida sem dinheiro, sem consumo, era uma vida sem oportunidades, como a sua. O que faziam os homens senão produzir, produzir, produzir, vender, vender, vender...Outros compram, compram, compram...Há os que preferem mais comprar a vender; esses, normalmente pensam, acertadamente, que tudo tem um preço, mesmo que às vezes seja um preço imensurável, um preço moral.
            Pedro Kloch deixou passar a chance. Perdeu a loira de pernas grossas de vista. Ela saiu do mesmo jeito que entrou, rapidamente. O smartphone havia tocado mais uma vez. Alguém do outro lado da linha estava com pressa. Ela fez um muxoxo, ajeitou a roupa, pagou a conta e partiu apressadamente.
            Ele olhou o relógio. Eram horas. Salvou os textos digitados e fechou o netbook. Dobrou o jornal e jogou na lixeira ao lado da mesa da loira. Eram horas. O conto seria retrabalhado em casa, no seu escritório, sem as tentações desse dia. O poema provavelmente ficaria esquecido nos seus arquivos e nunca mais veria a luz da tela do seu computador, muito menos seria impresso.
             Demorou, disse uma pragmática voz masculina. Demorei nada, precisava me produzir, respondeu uma lasciva voz feminina, não poderia aparecer aqui assim com aquela roupa comportada. Eu estava em busca da mulher perfeita, novamente a voz de homem. Acho que achei. Amei o seu corpo, principalmente suas pernas torneadas e sua bermuda branca contribuiu muito para isso, realçou o que já era perfeito, atiçou meus fetiches. Mas agora fique sem roupa, quero ver outras penugens...Amor, não compreenda mal, meu bem, disse a loira quase sussurrando, mas primeiro o pagamento. - Trezentos Reais.
            Ei-la, a diva devassa, vem leve, solta, lassa...

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